Governo do Estado de SP é condenado a pagar r$ 54.000.00 (mil) por conteúdo discriminatório. Este processo foi promovido pela Advogada Maria da Penha Guimarães.
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Registro: 2011.0000130452
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação / Reexame Necessário nº 0025502-11.2002.8.26.0053, da Comarca de São Paulo, em que é apelante/apelado FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO e Apelante JUIZO EX-OFFÍCIO sendo apelados/apelantes FRANCISCO DE ASSIS SANTANA (E POR SEUS FILHOS), REGINA DOS SANTOS (E POR SEUS FILHOS) e NYMY LUKENY DOS SANTOS (MENOR(ES) REPRESENTADO(S)).
ACORDAM, em 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso dos autores e negaram provimento aos recursos da Fazenda. V.U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores GUERRIERI REZENDE (Presidente) e BEATRIZ BRAGA.
São Paulo, 8 de agosto de 2011.
Magalhães Coelho
RELATOR
Assinatura Eletrônica
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Apelação / Reexame Necessário nº 0025502-11.2002.8.26.0053 – Voto nº 21.177 2
Voto nº 21.177
Apelação Cível nº 0025502-11.2002.8.26.0053 Comarca
de São Paulo
Recorrente: Juízo ex officio
Apelantes e reciprocamente apelados: Fazenda do Estado
de São Paulo e Francisco de Assis Santana e outros
AÇÃO INDENIZATÓRIA Distribuição de material pedagógico com conteúdo discriminatório Violação aos princípios constitucionais de repúdio ao racismo, da igualdade e da dignidade da pessoa humana Majoração dos danos morais diante do extraordinário gravame moral sofrido Recursos oficial e voluntário da Fazenda Estadual não providos e recurso dos autores provido.
Vistos, etc.
I. Trata-se de ação ordinária de indenização proposta por Francisco de Assis Santana e Regina dos Santos, em face da Fazenda do Estado de São Paulo, sob o fundamento de que a professora de seu filho disseminou o medo e a discriminação em relação à sua origem étnica ao desenvolver atividade que induziu ao racismo e lhes provocou danos materiais e morais.
II. A ação foi julgada parcialmente procedente para condenar a ré a ressarcir os autores à
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III. Interpostos recursos oficial e voluntário de apelação pela Fazenda do Estado de São Paulo, pugnando pela reforma da sentença monocrática.
IV. Interposto recurso de apelação pelos autores, pleiteando a majoração do valor da indenização e que a Fazenda Estadual arque com o pagamento de honorários advocatícios no importe de 20% (vinte por cento) sobre a condenação.
V. Foram apresentadas contrarrazões.
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VI. A Procuradora de Justiça oficiante opinou pelo provimento do recurso voluntário da Fazenda Estadual e pelo improvimento do recurso dos autores.
É o relatório.
Trata-se, como se vê, de recursos oficial e voluntário de apelação interpostos pelos autores e pela Fazenda do Estado de São Paulo, em ação ordinária de indenização proposta pelos primeiros em face da segunda, sob o fundamento de que a professora do filho dos autores disseminou o medo e a discriminação em relação à sua origem étnica ao desenvolver atividade que induziu ao racismo e lhes provocou danos materiais e morais, e que julgada procedente em parte na origem.
A análise dos autos revela que a professora do Estado de São Paulo, a pretexto de desenvolver a criatividade de seus alunos da 2ª série do ensino fundamental, fez distribuir entre eles um material pedagógico (fls. 14/17), com o seguinte conteúdo:
“Redação 8
Uma família diferente
A família lá no céu
Era uma vez uma família que existia lá no céu.
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O pai era o sol, a mãe era a lua e os filhinhos eram as estrelas. Os avós eram os cometas e o irmão mais velho era o planeta terra.
Um dia apareceu um demônio que era o buraco negro.
O sol e as estrelinhas pegaram o buraco negro e bateram, bateram nele.
O buraco negro foi embora e a família viveu feliz.
André Weirs, 7 anos” (fl. 16).
“Criação de texto
Assim como André, invente uma família diferente.
Conte:
a) quais são os membros dessa família;
b) onde ela vive;
c) como ela vive.
1. Desenhe a família diferente que você inventou.
2. Escreva um texto dizendo como é a família diferente. Invente um título.” (fl. 17).
“UMA FAMÍLIA COLORIDA
Era uma vez uma família colorida. A mãe era a vermelha, o pai era o azul e os filhinhos eram o rosa.
Havia um homem mau que era o preto.
Um dia, o preto decidiu ir lá na casa colorida.
Quando chegou lá, ele tentou roubar os rosinhas, mas aí apareceu o poderoso azul e chamou a família inteira para ajudar a bater no preto.
O preto disse:
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— Não me batam, eu juro que nunca mais vou me atrever a colocar os pés aqui. Eu juro.
E assim o azul soltou o preto e a família viveu feliz para sempre.
Bianca Cristina Castilho 7 anos” (fl. 14).
O que diante do conteúdo claramente discriminatório, agressivo e depreciativo da raça negra, provocou no filho dos autores e, por via de consequência, neles também, dor moral intensa, notadamente pelo medo infundido no menor quanto aos homens negros, inclusive de seu pai, por ser este negro e não um “poderoso azul”, como no material distribuído.
Circunstância essa bem demonstrada no parecer da psicóloga Maria José de Assis Souza, evidenciado o quadro de fobia do menor, a partir de então, em relação ao ambiente escolar. Sem qualquer juízo sobre a existência de dolo ou má-fé, custa a crer que educadores do Estado de São Paulo, a quem se encarrega da formação espiritual e ética de milhares de crianças e futuros cidadãos, tenham permitido que se fizesse circular no ambiente pedagógico, que deve ser de promoção da igualdade e da dignidade humana, material de clara natureza preconceituosa, de
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modo a induzir, como induziu, basta ver o texto da pequena Bianca o medo e a discriminação em relação aos negros, reforçando, ainda mais, o sentimento de exclusão em relação aos diferentes.
Com todo o respeito que merece a instituição do Ministério Público, de nada adianta transcrever a definição abstrata da “cor negra ou preta”, se não se contextualiza a gravidade dos fatos narrados nessa ação de indenização.
Anoto, aliás, que existe um passado no Brasil que não é valorizado, que não está nos livros e, muito menos, se aprende nas escolas.
Antes ao contrário, a pretexto de uma certa “democracia racial”, esconde-se a realidade cruel da discriminação, tão velada quanto violenta. Na abstração dos conceitos, o negro, o preto, o judeu, o árabe, o nordestino são só adjetivos qualificativos da raça, cor ou região, sem qualquer conotação pejorativa.
Como, todavia, não vivemos no mundo
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da abstração dos signos linguísticos, esses só ganham dimensão e concretude numa referência com o real.
Não se cuida aqui, portanto, de se consultar dicionários, mas de se analisar em que realidade esses conceitos incidem para se verificar o seu conteúdo discriminatório.
Há na ideologia dominante, falada pelo direito e seus agentes, uma enorme dificuldade em se admitir que há no Brasil, sim, resquícios de uma sociedade escravocrata e racista, cuja raiz se encontra nos processos históricos de exploração econômica, cujas estratégias de dominação incluem a supressão da história das classes oprimidas, na qual estão a maioria esmagadora dos negros brasileiros.
Na visão dominante e eurocentrista do mundo, ao negro só é reservado um papel subalterno e marginal, ligado quase sempre a aspectos negativos da personalidade humana.
A discriminação racial, dentro outras, está latente, invisível muitas vezes aos olhares menos críticos e sensíveis. Está, sobretudo, na imagem
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estereotipada do negro na literatura escolar, onde não é cidadão, não tem história, nem heróis. Ao contrário, é mau, violento, criminoso e está sempre em situações subalternas.
Não é por outra razão que o texto referido nos autos induz as crianças, inocentes que são, à reprodução do discurso e das práticas discriminatórias.
Não é a toa que o céu tem o sol, a lua, as estrelas e o buraco negro, que é o vilão da narrativa, nem que há “azuis poderosos”, “rosas delicados” e “pretos” agressores e ladrões.
Aí está o discurso discriminatório que reforça práticas discriminatórias. E é para essa realidade que os juízes e promotores têm que se referir ao julgar questões relacionadas às diversas práticas discriminatórias e são para a abstração dos conceitos nas páginas dos dicionários.
O material distribuído é sim claramente discriminatório porque reforça um sentimento de exclusão
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e preconceito em relação aos negros, nessa sociedade escravocrata como a brasileira.
Demais disso, não se está imputando a uma criança de sete anos a autoria do texto discriminatório que, como é evidente, dentro de sua ingenuidade, está apenas reproduzindo o discurso discriminatório contido no material didático indevidamente utilizado por pedagogos, de quem se espera, no mínimo, atenção e sensibilidade para o problema.
Aliás, como já anotei, é muito fácil dissertar sobre a abstração da cor negra, sem contextualizála no seio de uma sociedade que, embora dita multirracial, ainda encontra traços marcantes de uma sociedade escravocrata.
Dizer que o menor não apresentou problemas em razão do lamentável episódio é desprezar a sensibilidade própria das crianças, além de ser uma leitura apressada do laudo pericial.
O que ali está afirmado é que, à época dos fatos, o menor apresentou condição de menor valia, tristeza, agressividade que, todavia, foi trabalhada em
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psicoterapia e, por essa razão, no momento presente, não apresenta alterações graves.
Felizmente todas essas circunstâncias não passaram desapercebidas pela sentença monocrática que anotou que a atividade desenvolvida na escola pública do Estado colidiu com o princípio constitucional de repúdio ao racismo, de eliminação da discriminação racial, além de malferir os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Não é possível que pessoas preparadas para a tarefa de promover a personalidade de futuros cidadãos, como os educadores, e de concretizar a axiologia constitucional, notadamente, a igualdade social e racial e a dignidade humana, como nós Juízes e membros do Ministério Público, não percebam o conteúdo de mau gosto, opressivo e discriminatório contido no material, no qual para o negro é sempre reservado o assustador papel de vilão, em clara contradição com os azuis, os rosas, o sol, as estrelas.
Os danos morais sofridos pelos autores foram intensos e extremamente graves, intoleráveis face
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aos vetores axiológicos contemplados na Constituição Federal.
Afinal, para quem o contrário sustenta, não é dor moral ver o filho sofrer por discriminação racial? Vê-lo necessitar de acompanhamento psicológico em razão da fobia desenvolvida pelo ambiente escolar, como consta do laudo contemporâneo aos fatos (fl. 51).
Bem se vê, portanto, que a sentença monocrática foi sensível a todas essas circunstâncias, reconhecendo a lesão moral sofrida pelos autores, em razão da atividade desenvolvida no espaço pedagógico público.
Apenas em um aspecto merece reparo a sentença monocrática. É que o arbitramento dos danos morais ali estipulados não se acham adequados ao gravame sofrido pelos autores.
Daí o porquê, nega-se provimento aos recursos oficial e voluntário da Fazenda do Estado de São Paulo e dá-se provimento ao recurso dos autores para
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arbitrar os danos morais em R$ 27.000,00 (vinte e sete mil reais) para o menor e R$ 27.000,00 (vinte e sete mil reais) para seus pais, com juros de mora da citação e correção monetária dessa data, além de condenar a ré nas custas processuais e honorários advocatícios, que se arbitra em 20% (vinte por cento) sobre a condenação.
MAGALHÃES COELHO
Relator