“Por que justiçamentos não são acompanhados de repulsa?”

"Por que justiçamentos não são acompanhados de repulsa?"

por Rodrigo Martins 

Para a ministra dos Direitos Humanos, o discurso de ódio é um problema grave, que será alvo de ação do governo federal

Em resposta à onda de linchamentos que toma conta do noticiário nacional, o governo federal planeja uma ofensiva contra os grupos que disseminam o ódio na internet. De acordo com a ministra dos Direitos Humanos, Ideli Salvatti, a ideia é monitorar as redes sociais para identificar criminosos e denunciá-los à Justiça. Seria uma estratégia semelhante à usada no combate à pedofilia, mas abarcando um número maior de violações: ataques racistas e homofóbicos, incitação ao crime e às execuções extrajudiciais. “Na próxima semana, receberei o especialista Fábio Malini, [coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura] da Universidade Federal do Espírito Santo, para ver como esse monitoramento poderia ocorrer de forma eficaz”, antecipou a CartaCapital.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

CartaCapital: A que a senhora atribui a recente onda de linchamentos no Brasil?

Ideli Salvatti: Em primeiro lugar, eu não saberia dizer se há uma ocorrência maior ou menor de casos de linchamento no País. Tudo pode ser efeito de uma visibilidade maior destes casos na mídia. Não disponho de dados oficiais para afirmar isso. Todos esses episódios são acompanhados pelas polícias e secretarias de Segurança Pública estaduais. Não tenho conhecimento se essas estatísticas existem, é provável que as forças de segurança estaduais registrem as ocorrências como homicídios ou lesões corporais. As estatísticas não catalogam casos de linchamento.

CC: Sim, mas toda semana parece ter um.

IS: É verdade. Seja como for, há uma visibilidade maior dos casos na mídia. E a pergunta que fica é: por que esses justiçamentos não vêm acompanhados de uma contundente repulsa? Em alguns casos, vemos exatamente o aposto disso. Muitas vezes, o noticiário não destaca o horror dessas situações, demonstra certa simpatia ou compreensão em relação aos que decidem fazer justiça com as próprias mãos. Vivemos em Estado de Direito, não estamos mais na ditadura. Podemos ter críticas ao seu funcionamento, mas não admitir o retorno da barbárie.

CC: A senhora se refere aos comentários da apresentadora do SBT, Rachel Sheherazade, que classificou como “legítima defesa coletiva” as agressões sofridas por um adolescente infrator no Rio, preso pelo pescoço em um poste por jovens de classe média?

IS: Não acho conveniente citar exemplos. De forma explícita ou implícita, aquela máxima de “bandido bom é bandido morto”, o discurso do ódio, está presente na sociedade. Agora, eu estou bastante preocupada com a elaboração de alguma medida concreta que possa fazer frente a este fenômeno. Acredito ser necessário atuar de forma muito contundente contra a disseminação das chamadas redes de ódio. Essa foi, inclusive, uma das questões que abordei em meu discurso de posse, no fim de março. Foi logo após a votação do Marco Civil da Internet pela Câmara dos Deputados. E deixei claro que deveríamos estar não só preocupados com a defesa e promoção dos direitos humanos no mundo real, mas também no virtual. A Internet é meio de comunicação maravilhoso, um ambiente de liberdade de expressão, que permite a interação entre as pessoas. Mas que também propicia a disseminação das redes de ódio.

CC: E como fazer frente a este fenômeno?

IS: Precisamos ter algum tipo de monitoramento, porque determinadas ações na internet podem gerar muitos estragos na vida real. O linchamento de Fabiane no Guarujá é um exemplo disso. Um boato difundido pela internet acabou por despertar uma reação raivosa de algumas pessoas contra ela. Não há qualquer intenção de promover censura, é preciso deixar claro. Mas da mesma forma que combatemos a pedofilia na internet, devemos estar atentos aos que disseminam o ódio e o preconceito. Na próxima semana, receberei o especialista Fábio Malini, [coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura] da Universidade Federal do Espírito Santo, para ver como esse monitoramento poderia ocorrer de forma eficaz. Ele desenvolveu um aplicativo capaz de fazer o rastreamento das redes de ódio na internet. Pretendemos estabelecer um convênio com a universidade, para viabilizar essa tecnologia. Até porque assumi a Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência com esse compromisso, de enfrentar as redes de ódio na web.

CC: Muitas vezes esse discurso do ódio não se manifesta só na internet. Está na fala de parlamentares, de jornalistas…

IS: Sim, é um pensamento vivo e atuante, está disseminado na sociedade. Precisamos investir em políticas de valorização dos direitos humanos, trabalhar esses temas nas escolas, nos contrapor a este discurso reacionário. Esse caso do Guarujá, por exemplo, apesar de toda a violência, brutalidade e injustiça que a Fabiane sofreu, apesar de toda a dor causada à sua família, deve servir de exemplo. O caso fomenta uma reflexão sobre os impactos que os justiçamentos podem causar. Aliás, antes que paire qualquer dúvida, as investigações acenam que não houve qualquer crime cometido pelo Guarujá Alerta. A página não incitou a população a fazer justiça com as próprias mãos, como se noticiou. Este projeto não é uma resposta específica e direcionada a eles.

CC: Eles não incitaram o linchamento, mas deram asas ao boato.

IS: É, de certa forma. Por isso, defendo a existência de algum tipo de monitoramento, até para fazer o enfrentamento desse discurso nas próprias redes sociais. Uma boa parte do trabalho de defesa e promoção dos direitos humanos precisa ser feito na internet.

CC: O caso do Guarujá gerou muita comoção, até porque restou comprovada a inocência da vítima. Mas os linchamentos deveriam ser repreendidos em qualquer situação, não?

IS: Exato, é inadmissível que esse tipo de situação ocorra em um Estado de Direito. Temos um pacto social para viver em harmonia, dentro de regras. Pode não ser o perfeito, o que todos nós desejamos. Mas, se queremos aperfeiçoá-lo, devemos lutar por mudanças na lei, nas instituições. E não retroceder à barbárie. O que acontecerá se cada um decidir fazer o que bem entender, movido pela vingança? De qualquer forma, é muito importante o posicionamento público das autoridades, dos órgãos de imprensa, dos jornalistas, dos formadores de opinião, para repelir esses atos.

CC: Mas muitos questionam a postura tímida do governo federal de encarar esse discurso mais reacionário, por exemplo, quando parlamentares ou jornalistas falam abertamente que “bandido bom é bandido morto”.

IS: A Secretaria dos Direitos Humanos está numa ofensiva para valorizar os direitos humanos e ocupar os espaços de debate, não foge dessa questão. Temos medidas propositivas, como esta que vai na linha de monitorar a internet e desbaratar as redes de ódio. É o que posso fazer dentro dos limites da pasta que ocupo.

CC: A senhora destacou que não haverá censura. Portanto, eu imagino que este trabalho de monitoramento das redes sociais será feito em cooperação com as polícias e o Ministério Público. O governo denuncia, e a Justiça avalia o caso. É isso?

IS: Sim, seremos parceiros. Atuaremos da mesma forma como ocorre no combate à pedofilia. Eu diria que estamos em fase preliminar, o projeto não está completamente formatado. Mas a ideia é ampliar o leque do monitoramento que já é feito nos casos de pedofilia. Agora, abarcando mais violações: ataques racistas e homofóbicos, incitação ao crime e às execuções extrajudiciais, a violência contra mulheres. Enfim, as redes de ódio tradicionais.

Fonte: Carta Capital

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