Potências que vêm da periferia precisam ocupar espaços de poder

FONTEPor Wesley Teixeira, da Folha de S. Paulo
Associação dos moradores da Cachoeirinha e da Brasilândia, na zona Norte de São Paulo, distribuem cestas básicas e kits de higiene para ajudar a população durante a pandemia de coronavírus (Foto: Rubens Cavallari/ Folhapress)

Na publicação “Equidade Racial: Desafios no Brasil Contemporâneo”, do Instituto Ibirapitanga (disponível em seu site), Edson Cardoso, um intelectual do movimento negro, vem dizer que o debate público é fundamental para as transformações sociais e que, muitas vezes, todo um segmento é silenciado e excluído dele.

Mais à frente, Cardoso fala sobre o acervo cultural e de civilização trazido por seres humanos livres que foram escravizados e que, no pós-abolição, foi considerado descartável. O quanto não estamos perdendo com isso? Quando não valorizamos a trajetória, a história e o aprendizado de pessoas que produziram possibilidade de prosseguir sem o Estado e assim sobreviver —que nessas sabedorias mora um tesouro.

Por isso construo pré-vestibulares —para entrarmos na universidade— e por isso escrevo hoje sobre o protagonismo dos territórios nas ações sociais da pandemia. As orientações eram: lavem as mãos e fiquem em casa. Mas como fazer isso tendo que levar comida para a mesa, trabalhando de dia para comer à noite, morando em poucos cômodos com muita gente em regiões como a Baixada Fluminense, onde falta água?

Sabíamos, como afirmamos nesta coluna, que a Covid-19 mataria, mas a desigualdade social aceleraria esse óbito. Foi por isso que atuamos: o Movimenta Caxias (que existe há três anos), junto com a ONG Criola, o PerifaConnection e o Instituto Marielle Franco, nos últimos três meses alcançou 47.771 famílias, com kit de higiene e cestas de alimentos, entre eles orgânicos produzidos por pequenos agricultores das cidades e máscaras de pano feitas por costureiras locais. Sem falar na informação com faixas, adesivos, jornais, carro de som, e garantindo muitas vezes o acesso ao auxílio emergencial com mulheres negras ajudando outras. E somos uma pequena parte que se juntou a tantas outras periferias, como Alemão, Ilha, Cidade de Deus, Maré, Acari e outras no Brasil inteiro, que seguiram o comando da escritora Conceição Evaristo: “Se eles combinaram de nos matar, nós combinamos de não morrer”.

Tentando não morrer de vírus e de fome, vimos o crescimento das operações policiais. Segundo dados do ISP, em abril de 2020 a polícia matou 43% a mais que abril de 2019 —foram 13 mortos no Alemão—, e a ação continuou até a invasão de uma casa, onde mataram João Pedro, um menino, e sequestram seu corpo com um helicóptero.

Isso nos levou a um ato online com a Coalizão Negra por Direitos que alcançou mais de 77 mil pessoas e também nos forçou, um grupo de jovens negros que já estavam entregando cestas, a puxar atos de rua. Só fomos às ruas porque eles foram em casa nos matar, e não queremos morrer de fome, de vírus e nem de tiro. Ao mesmo tempo em que nos EUA havia um levante pela morte de George Floyd, fizemos o STF se posicionar proibindo operações em época de pandemia e vimos agora, após essa decisão, o impacto na redução de 73% na letalidade policial.

Como disse Maria Carolina de Jesus, o Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome: “A fome também é professora”. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças. Precisamos ocupar o lugar de proposição e execução de políticas públicas, estando nos espaços de poder legislativo e executivo pelo Brasil inteiro com essa potência que vem da periferia.

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