No Dia da Consciência Negra, o gshow conversou com artistas que compartilham a jornada que é ser um profissional preto na teledramaturgia. Entre eles, atores, atrizes e diretores que avaliam o cenário atual, suas conquistas e desafios, ao assistirem a um maior protagonismo em obras que têm buscado a diversidade como valor.
Uma delas é a diretora Juh Almeida. A baiana de 33 anos chegou ao Rio de Janeiro no começo do ano para integrar a novela Vai na Fé, sucesso do horário das 19h da Globo. No mesmo complexo de gravações, a alguns cenários de distância, estava Mestre Ivamar, cujo trabalho no teatro se mistura com a vida no ativismo desde os anos 1970, no Movimento Negro Unificado (MNU).
Mesmo assim, o paulistano conta “ter sentido uma criança”, quando chegou aos estúdios para trabalhar em Amor Perfeito, a primeira novela do ator de 65 anos. Mesma idade da colega de profissão Mariah da Penha, atualmente no ar como como Raquel, em Elas por Elas, mãe dos personagens interpretados por Késia e Lázaro Ramos, dois dos protagonistas da trama das 6.
Apesar dos quase 40 anos só na teledramaturgia, a atriz encontrou em Raquel uma característica simples, mas inédita, na funcionária pública aposentada que a afasta das outras personagens de sua carreira: ela não sabe cozinhar.
“Para mim, era trabalho. Sempre foi trabalho. As empregadas domésticas que interpretei me permitiram fazer meu teatro”, explica Mariah, que ainda destaca a representatividade de Raquel por não ser bem-dotada nos afazeres domésticos. “Tira ela totalmente desse lugar de serviçal, de quem está servindo. Nem toda mulher preta precisa saber estar na cozinha”, ressalta a atriz, que ainda é produtora, cientista social e historiada, formada pela FGV.
Referências de uma longa jornada
Hoje referência aos mais jovens, Mariah tem uma lista curta e de peso ao citar as suas, que, com exceção de Zezé Motta, já nos deixaram: Léa Garcia, Ruth Rocha, Chica Xavier, Zeni Pereira, Jacira Silva. “O mercado está aí e espero ocupá-lo por mais muitos e muitos anos, igual minhas queridas e deusas”, comemora ela.
Mestre Ivamar também tem sua lista de referências e contracenou com duas delas em Amor Perfeito: Tony Tornado e Antonio Pitanga. A relação ainda incluí Milton Gonçalves, morto em 2022, que conheceu durante a Conferência de Durban, na África do Sul, em 2001. Há tembém espaço aos nomes mais jovens: “Nosso querido baiano Lázaro Ramos e da companheira dele, Taís Araujo”.
Amor Perfeito tinha como um dos protagonistas um médico preto na década de 1930 – o Orlando, de Diogo Almeida. Já a anti-heroína da trama, responsável por uma das principais viradas, era a fotógrafa Lucília, papel de Kênia Bárbara, cuja existência foi celebrada pela atriz, que viu no papel um “caminho de renovação às personagens pretas.”
Ao falar da novela, Ivamar garante que, se a trama das 6 conseguiu o feito de ter um elenco 50% composto por atores negros, foi consequência de uma ação coletiva, dessas diferentes vozes. “Qualquer pessoa que participou da novela, vai falar do carinho e afeto. Nós ali… Nossa Senhora… todos os profissionais sentiram essa força que é a diversidade”, conta o intérprete de Popó.
Ao falar de negros na dramaturgia, Ivamar também menciona profissionais de diversas áreas, que, ao longo das últimas cinco décadas, levantaram a pauta racial: o sociólogo Clóvis Moura, a filósofa Sueli Carneiro, o geógrafo Milton Santos e o documentarista, acadêmico e cineasta Joel Zito Araújo.
Significado e relevância
Ciente do alcance que uma telenovela pode ter, Mestre Ivamar conta ter relacionado a experiência em Amor Perfeito, acima de tudo, ao histórico que exerceu no ativismo racial.
“Não olhei para esse trabalho com um olhar global, mas sim como um militante. Quando eu saía nas ruas, os senhores e senhoras negras se viam muito representados. Era esse meu papel. Eu sabia disso. Tinha o entendimento de que minha participação na história iria mostrar a eles: ‘Tem um negro igual a nós. Há uma possibilidade, sim’. Acho que é uma missão. Entrei com o espírito de articular a luta antirracista”, define o ator.
“E existe uma coisa interessante que é a saúde mental da nossa população (negra). Dos nossos pais e avós. Eles nunca tiveram acesso a terapia. Só tiveram acesso a trabalho e o entretenimento era assistir televisão. Mas, na televisão, se viam e continuavam como domésticas e naqueles papéis que a gente já sabe”, complementa.
“Quando estou andando na rua, pessoas negras anciãs me param, querem me sentir e dizer: ‘Que bom que vi isso na minha vida’. É muito importante dar à nossa ancestralidade um referencial. E essa porta foi aberta.”
Em 2022, a Paramount Global publicou um levantamento feito em 15 países sobre diversidade em obras de ficção do audiovisual. No Brasil, 23% alegaram ser retratados como criminosos e 24%, de perfis perigosos. Em 2000, o cineasta Joel Zito Araújo publicou o livro “A Negação do Brasil – O Negro na Telenovela Brasileira”, a partir da tese de doutorado que defendeu na USP, cuja extensão ainda resultou o lançamento do documentário homônimo.
Naquele ano, a televisão brasileira comemorava cinco décadas de existência; o trabalho de Araújo, por sua vez, analisava um recorte a partir de 174 novelas ao longo de 33 anos – 1964 e 1997.
Entrevistados no documentário, Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Zezé Motta recordavam as poucas oportunidades no meio, os mesmos perfis escravistas dos papeis, os ataques sofridos quando expostos ao holofote e o apagamento dos méritos conquistados. Agora, 23 anos depois do lançamento, Joel Zito vê outra realidade no meio. “Éramos poucas vozes na sociedade brasileira. Hoje, temos uma quantidade que não dou mais conta. Toda hora me surpreendo com um novo intelectual, artista, ator”, celebra ele, agora investiga outra esfera da descriminação racial na série “A Ética do Silêncio”, no Canal Curta!.
Ao falar do setor do audiovisual, a qual Joel Zito considera ter sido um dos mais racistas do país durante muito tempo, o diretor vê a mudança do panorama desta e outras áreas, em grande parte, como resultado de um projeto específico: a Lei de Cotas, programa a quem ele credita principalmente ao Movimento Negro Unificado por ter conseguido emplacar. Sancionada em 2012, a lei garante a reserva de 50% das matrículas nas universidades e institutos federais de educação públicos no Brasil.
“Essa mudança trouxe para a cena cultura brasileira muitos jovens negros e negras como debatedores. Pessoas que começaram a ter o instrumento da crítica, o instrumento de uma formação acadêmica para enfrentar o racismo na sociedade brasileira”, explica.
“E esses profissionais sabem que não podem ignorar o racismo. Se ignorarem os racismos e seus efeitos perversos, eles voltam para o lugar de antes”, diz, ainda argumentando como a presença em massa de negros no audiovisual ainda beneficia profissionais que já atuavam no meio.
“Como reflexo disso, hoje temos uma maior participação de atores negros que, consequentemente, cria oportunidades para os jovens como os mais velhos, que estão na terceira idade. Grandes atores, que não eram reconhecidos.”
Atrás das telas também
De fato, os tempos universitários são uma experiência que a diretora Juh Almeida destaca; ela saiu de Catu, na região metropolitana da capital baiana, rumo a Salvador, para estudar na Federal da Bahia (UFBA). Aluna do curso de Artes com concentração em Cinema, depois de formada ainda foi para São Paulo, onde se especializou em direção de fotografia e roteiro. “Lá (na UFBA), cresci profissionalmente e isso me levou até Vai na Fé. Hoje, após passar pela experiência, sinto que tudo construído nesses anos foi a bagagem necessária para chegar na novela”, diz ela.
Sucesso de crítica e audiência, a trama das 7 exibiu a história de Sol, primeira protagonista da atriz Sheron Menezzes; “princesinha do funk” na juventude, a mãe de família evangélica deixava de ser vendedora de quentinhas e retomava a carreira artística como dançarina e cantora.
“Quando peguei a sinopse da novela, fiquei maravilhada”, lembra ela. “Lá, tinha uma família repleta de pessoas negras. E isso é algo que não estamos acostumados. Já entendemos de representatividade, então, agora vamos falar de subjetividade”, ressalta a diretora. “Quais são os sonhos desses personagens? Estamos acostumados com os negros marginalizados ou em posições subalternas. Acho que fez esse sucesso porque veio da construção do imaginário social que retrata o Brasil”, analisa, ao comentar da primeira novela em que trabalhou.
Juh defende a expansão de profissionais negros em todas as áreas: roteiro, direção de fotografia, caracterização, figurino e por aí vai. “Coisas que são minúcias, mas que passam por esse lugar de criatividade que só a gente vai entender. Como Kate (personagem sensação de Clara Moneke) trançando o cabelo após uma decepção amorosa e porque precisava que fossem pessoas negras trançando o cabelo dela”, recorda.
“Em Vai na Fé, tive muita sorte, porque o Paulo Silvestrini (diretor artístico) foi muito aliado. Ele pegou na minha mão para construirmos algo junto. Mas em todo departamento tem que ter uma de nós. A gente precisa olhar pra alguém no set e encontrar lugar seguro, porque esses espaços (do audiovisual) ainda podem ser muito violento para nós”, avalia ela.
Mas Juh ainda quer trabalhar muito e tem o desejo que as obras expressem um pouco de tudo possível, dos assuntos importantes aos fúteis. “Não quero ficar taxada só como a diretora negra que trabalha com recortes raciais”, pontua. “O que me incomoda muito nas obras que abordam temáticas raciais é que, muitas vezes, passa pelo lugar da dor. Precisamos construir personagens negros mais simples, nesse sentido. Que passem por um lugar além do recorte social. Já vivemos isso o tempo inteiro. Sou uma diretora. Posso dominar qualquer tema e assunto, como qualquer outro diretor.”