Quando o assassínio de um negro fez mudar a lei

A morte de Stephen Lawrence, há 25 anos, foi um daqueles eventos que iluminam alguns dos aspetos mais infelizes da nossa sociedade, e o modo como as forças que a deviam defender protegem antes os criminosos. A BBC acaba de estrear um documentário em três episódios sobre o caso

Por Luís M. Faria Do Expresso

Stephen Lawrence METROPOLITAN POLICE / GETTY IMAGES

Este domingo cumprem-se 25 anos sobre um crime que teve efeitos profundos sobre o sistema policial e jurídico. Os efeitos, como repetidamente se constata, não foram tão profundos como deviam ter sido, mas o próprio facto de isso ser notado já é positivo. Quanto às circunstâncias do crime em si mesmo, bem como do seu encobrimento, ainda hoje continuam a sair notícias. Quanto mais não seja porque três homens que quase de certeza foram coautores e que estão perfeitamente identificados nunca chegaram a receber castigo.

O crime foi o homicídio de Stephen Lawrence, em Eltham, no sudeste de Londres, a 22 de abril de 1993. Aos 18 anos, Lawrence era um jovem bem parecido, tranquilo, sorridente, popular, bom estudante, bom desportista. Queria ser arquiteto. Era também negro, filho de pais jamaicanos que tinham emigrado para o Reino Unido. Nessa fatídica noite, ele tinha estado a jogar videojogos com um amigo numa casa que não era a deles. Os dois encontravam-se à espera numa paragem de autocarro quando um grupo de cinco jovens brancos apareceu. Como Lawrence se tinha afastado um pouco da paragem, o amigo viu a cena ao longe. Aliás, até hoje lamenta ter começado a fugir. Ao fim de todos estes anos, a mãe de Lawrence continua a não lhe falar.

Os cinco jovens rodearam Lawrence e esfaquearam-no: uma vez no pescoço, outra no ombros. Ambas as feridas romperam artérias, e um pulmão também foi atingido. Lawrence ficou mortalmente ferido, mas ainda conseguiu correr uns metros. Quando tombou, provavelmente já não havia nada a fazer. Ou se calhar havia. O facto é que outras testemunhas chamaram a polícia e esta, quando chegou, pouco ou nada fez para obter socorro. Segundo a descrição oficial feita mais tarde, limitaram-se a constatar que ele não tinha salvação.

O encontro de Nelson Mandela com os pais da vítima, duas semanas depois do crime, foi decisivo para dar notoriedade ao caso PA IMAGES / GETTY IMAGES

UMA MANCHETE DECISIVA

Nos dias seguintes à morte de Lawrence, o calvário dos pais foi agravado pela passividade continuada (quando não pior) da polícia. Embora anónimos tenham depositado os nomes dos cinco suspeitos no vidro de um carro da polícia e numa cabine telefónica, e as identidades deles fossem conhecidas por muita gente na comunidade – a polícia sabia de certeza quem eram ao fim de três dias – não houve quaisquer medidas tomadas. A situação atingiu rapidamente foros de escândalo, e o que terá finalmente feito a diferença foi a visita de Nelson Mandela a Londres. Ao surgir com os pais de Lawrence em público, Mandela deu ao caso projeção universal.

Alguns dos jovens acabaram por ser presos, mas a procuradoria declinou acusá-los, como argumento de que não havia provas. Vários deles tinham anteriormente estado envolvidos em atos violentos de natureza racista. A família de Lawrence lançou em 1994 uma acusação particular, mas ela só prosseguiu contra três dos réus que acabaram por ser absolvidos em julgamento.

Em princípio, o caso estaria terminado, dada a velha regra da double jeopardy que existe no direito anglo-saxónico, segundo a qual ninguém pode ser julgado pelo mesmo crime duas vezes. Mas o sentimento de que fora cometida uma grave injustiça era demasiado forte e geral para a questão ser deixada em paz.

Em fevereiro de 1997, o tablóide “Daily Mail”, um dos jornais mais poderosos no Reino Unido, fez uma manchete de página inteira com a palavra MURDERERS (Assassinos). Por baixo vinham os retratos dos cinco acusados do crime, e a frase: “O Mail acusa estes homens de matar. Se estamos errados, eles que nos processem”.

A capa do “Daily Mail” CAPTURA DE ECRÃ

“RACISMO SISTEMÁTICO” NA POLÍCIA

Foi um dos raros exemplos em que alterações legais e políticas podem ser atribuídas com razoável probabilidade a uma manchete de jornal. Embora um primeiro inquérito tenha outra vez dado em nada, o secretário (ministro) do Interior do recém-empossado governo trabalhista, Jack Straw, ordenou em julho um segundo inquérito sobre as circunstâncias do caso. Dois anos depois, esse inquérito produziu um relatório que criticava numerosos aspetos da atuação das autoridades e concluía pela existência de “racismo sistemático” entre as forças policiais.

As conclusões do Relatório MacPherson – conhecido pelo nome do homem que dirigiu o inquérito – têm sido muito comentadas até hoje, e não só no Reino Unido. Parte das suas recomendações tinham a ver com a própria lei. Em relação à double jeopardy, ele recomendava que a regra fosse abrogada para certos crimes extremamente graves e quando surgissem novas provas que criassem uma forte possibilidade de condenação. Além de homicídio, estavam em questão crimes como a violação, o rapto e o roubo à mão armada. A alteração na lei veio mesmo a concretizar-se em 2005.

Por essa altura, um dos suspeitos foi preso por tráfico de drogas. Em 2007, soube-se que a polícia havia reaberto o caso Lawrence. Exames mais precisos da roupa que dois dos suspeitos usavam na noite do crime detectaram vestígios de sangue, cabelo e fibras da roupa de Lawrence, com um grau de quase cem por cento de certeza.

TONY HARRIS – PA IMAGES / GETTY IMAGES

SE AS VÍTIMAS FOSSEM BRANCAS…

Em 2012, três dos homens foram finalmente condenados pelo crime: um a prisão perpétua e os outros a 15 e 14 anos. De fora ficaram os outros dois alegados autores do crime, sobre os quais faltam provas igualmente irrefutáveis (mas que, tal como os condenados, jamais chegaram a processar o “Daily Mail”). Muita gente achou as penas demasiado benignas. O motivo foi o facto de na altura do crime os condenados ainda não terem a idade da plena responsabilidade penal.

Incansável, a mãe de Lawrence criou o Stephen Lawrence Charitable Trust, uma organização da natureza educacional para promover a justiça social. Em 2013, foi nomeada par na Câmara dos Lordes, tornando-se baronesa. Em janeiro, perante a epidemia de homicídios à faca que assola Londres, acusou abertamente de indiferença o parlamento. Se as vítimas fossem brancas, os deputados importar-se-iam mais, disse.

Entretanto, de vez em quando saem novas notícias sobre o caso. Há anos, foi revelado que a polícia colocou espiões na campanha em prol da justiça para Stephen Lawrence. Testemunhas falaram na intimidação de que foram alvo. Um irmão de Lawrence contou as dezenas de vezes que foi detido pela polícia sem qualquer motivo. E há dias, soube-se que o pai de um dos suspeitos pagava a vários polícias para o manterem informados sobre o curso da investigações.

A mãe de Lawrence, aqui com altas figuras de vários quadrantes da política britânca criou uma organização da natureza educacional para promover a justiça social e, em 2013, foi nomeada par na Câmara dos Lordes PETER MACDIARMID
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