Quem tem medo da sociedade civil?

FONTEDiplomatique, por Denise Dourado Dora
Indígenas de diversas etnias participam de sessão solene em homenagem aos povos indígenas no plenário do Senado Federal (Imagem retirada do site Diplomatique)

Quem tem poder para escrever uma declaração universal de direitos? Quem sabe mobilizar milhares de pessoas e parar a economia? Quem resiste firmemente ao racismo e à violência por séculos? Não são indivíduos isolados, mas principalmente os grupos, coletivos e movimentos; são organizações da sociedade civil.

Em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. No plenário da ONU apareceram os grandes personagens que ajudaram a produzir esse documento, como Eleanor Roosevelt, Rene Cassin e outros. Entretanto, quando se recorre aos arquivos de memória desse período, às atas das reuniões, às propostas apresentadas, vemos que havia grandes personagens nos bastidores do processo, personagens coletivos que representavam milhares, centenas de milhares de indivíduos e vozes. Eram as organizações da sociedade civil, que traziam a esses fóruns de debate global as demandas e histórias de pessoas de todos os cantos do mundo.

Podemos imaginar quantas questões foram trazidas pelos representantes de pessoas massacradas na Segunda Guerra Mundial pelo antissemitismo, pelas lutas anticoloniais na África, pelas populações originárias da América Latina? Seria possível pensar em direitos sem uma sociedade civil ativa e solidária?

Essa Declaração Universal, escrita por muitas e muitas mãos, fala de algumas liberdades indispensáveis, como a liberdade de opinião e de expressão, de informação e de reunião e associação pacíficas. Assim, o direito de reunir-se e de formar grupos associativos passa a ser inscrito na gramática de direitos humanos como um exercício de liberdade fundamental.

Sabemos que, antes disso, leis nacionais já admitiam e regulavam a prática de associar-se; muitas vezes não para todo mundo, já que leis respondem – em regra geral – a interesses dominantes. Trabalhadores/as criarem sindicatos, povos negros registrarem terreiros, mulheres votarem e formarem partidos são exemplos de interdições do século XX ao direito de organizar-se, algumas presente até hoje.

Por isso, talvez, as mobilizações e organizações da sociedade civil provoquem medo em alguns governantes. Afinal, quem tem poder para escrever uma declaração universal de direitos? Quem sabe mobilizar milhares de pessoas e parar a economia? Quem resiste firmemente ao racismo e à violência por séculos? Não são indivíduos isolados, mas principalmente os grupos, coletivos e movimentos; são organizações da sociedade civil. Não por acaso, em seu discurso no dia 22 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro converteu a 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas em plataforma de desinformação: nesse espaço institucional, e como autoridade representando uma nação, disparou notícias falsas e jargões sem evidências sobre o vazamento de petróleo na costa brasileira, as queimadas na Amazônia, Cerrado e Pantanal, o valor do auxílio financeiro aprovado pelo Congresso Federal na pandemia e a gestão catastrófica da emergência de saúde pública no Brasil.

A isso somou ataques à liberdade de imprensa e aos direitos de associação e participação social, ao insistir em hostilizar comunicadores e organizações da sociedade civil. Ao contrário do que tentou, o discurso de Jair Bolsonaro só deixou ainda mais evidente a importância e a urgência da existência e do fortalecimento de povos tradicionais, de comunidades indígenas e quilombolas, da liberdade de imprensa, de organizações da sociedade civil, de defensores de direitos humanos e ambientais no Brasil. Como uma rede tecida por muitos fios, são as instâncias coletivas que produzem a teia e os vínculos entre pessoas e os projetos de uma nação, trazendo as experiências e demandas de gente muito diversa, enriquecendo o debate público, saindo da caixa das formas tradicionais de representação.

Entretanto, o discurso – embora falacioso – não é vazio. O governo federal tem, desde janeiro de 2019, investido contra a liberdade e a autonomia da sociedade civil e as expressões de liberdade de opinião. Para não deixar dúvidas sobre suas intenções de erodir o espaço público não governamental brasileiro – se alguém ainda as tinha –, em 1º de janeiro de 2019 o governo publicou a MP n. 870/2019, que em seu artigo 5º, ao tratar das competências da Secretaria de Governo da Presidência da República, indica que esta tem o papel de “II – supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”. Primeiro dia de governo!

A intenção precisa de comprometer a autonomia das ONGs aparece nos verbos “supervisionar, coordenar, monitorar”, como se o espaço de debate e engajamento cívico pudesse, ou devesse, ser coordenado pelos governos. A reação forte desta sociedade e o apoio de parlamentares permitiram a alteração da lei naquele momento, mas não impediram que se nomeassem agentes e oficiais de governo inadequados para a função e desrespeitosos com o diálogo com as organizações.

Ataques sistemáticos
Assiste-se, desde então, a um ataque semanal às liberdades de opinião e expressão cívicas. E este não é um ataque menor, ou individual, como às vezes se pensa ao ver um ou uma jornalista sofrer ameaças e perseguições. As liberdades de falar e organizar-se não são secundárias – seja porque são necessárias para a conquista ou defesa de outros direitos humanos, seja porque sua restrição é justamente um dos principais mecanismos de sufocamento democrático. Muitas vezes se toma a liberdade de expressão e associação como um direito clássico, sem compreender que a agenda de expressão vai além da perspectiva liberal de um direito individual. Hoje, no Brasil, ela se materializa como uma defesa de pluralidade de vozes e de garantias a grupos discriminados que sofrem violações sistemáticas e que são justamente os que mais se levantam contra injustiças e para defender direitos humanos e ambientais.

Os ataques a ONGs, movimentos sociais, povos tradicionais, imprensa, artistas e escolas são parte da restrição à liberdade de expressão no Brasil que está em curso. Exemplos disso foram o processo de intimidação e criminalização contra a organização Saúde e Alegria e as prisões de quatro integrantes da Brigada de Incêndios de Alter do Chão, que demonstram a tentativa de impedir que as organizações da sociedade civil participem livremente de assuntos de evidente interesse público. De acordo com o documento enviado para ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos por organizações brasileiras, “desde as eleições presidenciais de 2018, as organizações da sociedade civil brasileira vêm sofrendo sistemáticos ataques, em um processo de desmoralização e criminalização que coloca em risco os direitos fundamentais de associação, de liberdade de expressão e de presunção de inocência”.

Esse caso é emblemático de uma combinação entre o ataque à liberdade de construir grupos e coletivos para o ativismo ambiental com o desmonte do sistema de informações ambientais, já existente no Brasil, e a propagação de notícias falsas por autoridades públicas, quando estas tentam imputar a organizações da sociedade civil responsabilidade por violações que elas buscam combater – como as queimadas. Parece uma fórmula óbvia: desmonta as informações públicas, destrói o laço social e vende uma floresta. Passa a boiada. Portanto, a diminuição da transparência pública se combina com a destruição de espaços de participação social e da produção e divulgação de dados e evidências que embasem políticas públicas.

As queimadas na Amazônia e o ataque aos direitos dos povos indígenas e populações tradicionais são expressões desse processo de erosão do ambiente público e, neste ano de Covid-19, o impacto da ausência de informação e de debate cívico amplo mostra seu efeito perverso e letal. Com 140 mil pessoas mortas como consequência do coronavírus, o presidente Bolsonaro e seus apoiadores fazem uso dessa combinação perversa de desmonte de políticas públicas e de sistemas de transparência, com ataques às organizações para provocar insegurança e recuo.

Liberdade de imprensa

Desde que foram confirmados os primeiros casos de Covid-19 no Brasil, ao menos 82 ataques a jornalistas e comunicadores que realizavam coberturas relacionadas à pandemia e às recomendações de prevenção da Organização Mundial da Saúde foram registrados. Os dados mostram ainda que 72% desse ataques foram realizados diretamente por membros do governo federal, pelo presidente da República e por políticos associados, revelando um cenário em que o descrédito da informação e do trabalho da imprensa e as agressões contra jornalistas são abertamente incentivados por membros do atual mandato. Quase 10% dos ataques ocorreram durante coberturas em hospitais e comércios que permaneceram abertos, contrariando decretos municipais e estaduais, e políticas de prevenção contra o vírus no período. As coberturas nesses casos foram interrompidas, por vezes contando com agressões físicas e verbais, colocando em risco a segurança dos jornalistas ali presentes e prejudicando o direito da população à informação – ainda mais necessário no contexto de uma grave pandemia. São informações que poderiam orientar decisões individuais e coletivas de prevenção à Covid-19.

Além desses ataques específicos, 449 violações contra jornalistas e comunicadores foram cometidas pela expressão, opinião e associação do presidente da República, seus ministros, familiares que exercem mandatos e políticos relacionados, entre janeiro de 2019 e setembro de 2020. Esses ataques reiterados geram um ambiente de deterioração do trabalho da imprensa – de forma mais evidente por meio de insultos, ameaças e intimidações, ataques verbais, virtuais e impedimento de cobertura em determinadas situações –, mas também, de maneira indireta, deterioração da liberdade de imprensa e mobilização da máquina pública para promover – e não coibir – a desinformação. Em 42% dos casos (189) se fez uso de um discurso estigmatizante, no qual comunicadores e veículos de mídia foram acusados de manipular o conteúdo jornalístico produzido para tentar desestabilizar o governo ou o país ou deteriorar a imagem do atual mandato, produzindo notícias falsas. Essa acusação é feita sem nenhuma evidência que a prove.

Além do discurso estigmatizante, houve a deslegitimação do trabalho da imprensa em 38% dos casos (170), em que se verificou uma associação do trabalho jornalístico a termos pejorativos, colocando em xeque o papel e a importância da imprensa. O principal efeito dessa violação foi o crescente descrédito da população nos meios de comunicação e informação, que seguem padrões profissionais e são passíveis de checagem. Esse descrédito, entretanto, se desdobra em diversos outros efeitos, ampliando a desinformação da população. O discurso estigmatizante e a deslegitimação do trabalho da imprensa acentuam o contexto de desinformação crescente, uma vez que as informações trazidas ao público pela imprensa acabam associadas a uma estratégia política. Além disso, esse discurso contribui para o aumento da hostilidade social ao trabalho de jornalistas e comunicadores, criando um ambiente que propicia a ocorrência de violações mais graves, como episódios recentes de agressões físicas e verbais, ataques virtuais em massa e interrupção de cobertura – mesmo em situações extremas, como a emergência de saúde pública.

Esses são, muitas vezes, casos emblemáticos, mas com efeitos profundos na sociedade brasileira, já marcada por um forte padrão de desigualdades e discriminações. Do ponto de vista simbólico, essa retórica opera para tentar retirar legitimidade de vozes plurais – de novos coletivos de comunicação falando de racismo na vida do povo brasileiro, novas blogueiras, negras, feministas, de espaços cívicos de projeção de experiências. O ataque à comunicadora Bianca Santana, integrante da Coalizão Negra por Direitos, em pronunciamento público do próprio presidente, repete a fórmula: acusada de produzir notícias falsas, Bianca entra na justiça e o porta-voz se retrata. Mas aí a máquina de produzir ataques racistas e misóginos já começou a funcionar. Além de acionar o poder judicial nacional, a jornalista apresenta seu depoimento na reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra.

Agenda de direitos

As violações às liberdades de expressão, opinião e associação são agravadas em relação aos direitos das populações indígenas, negra e quilombola e das mulheres – em que as ações do governo federal incluem não só um apagão de dados e informações epidemiológicas, como também a não execução de orçamento e de políticas públicas que poderiam assegurar direitos no cenário de emergência. Incluem ainda ataques diretos e violações.

Há a perda de eficácia de políticas públicas que agrava as crises, e a população vai paulatinamente perdendo a capacidade de fiscalizar a ação do Estado, incluindo sérios casos de corrupção. Com estímulo à desinformação e à polarização, cresce a parcela da sociedade que é conivente com violações de direitos e retrocedemos em relação ao enfrentamento de desigualdades e discriminações estruturais, em especial o racismo e as violências de gênero.

Mais do que defender-se, a sociedade civil brasileira se coloca na linha de frente da defesa das liberdades e, ao fazer isso, aponta para uma agenda de debates sobre a intersecção entre direitos que possam garantir condições de existência digna com pilares de reconstrução do tecido social, que está sendo corroído por mentiras, fraudes, captura do espaço público e desmonte de saber.

O Estado não é um governo; o Estado brasileiro não é este governo e, de qualquer forma, para nós, brasileiros/as, esta nação é a que temos por enquanto. Repensar nossas estratégias de defesa do tecido social, reativar nossas redes de colaboração, trabalhar em conjunto, em comunidades, estar juntos e juntas parece ser, neste momento, nossa maior potência. Temos muito a fazer para garantir que esta sociedade civil, que escreveu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, siga viva e forte para defender a sobrevivência do planeta e de nosso dia seguinte. Estamos aprendendo algo com este ano, e talvez a grande lição seja ver que há horizonte.

Denise Dourado Dora é diretora executiva da Artigo 19 – organização internacional de defesa da liberdade de expressão e informação.
-+=
Sair da versão mobile