Racismo estrutural ainda persiste na educação brasileira

Iracema Santos do Nascimento e Marcelo Rosanova Ferraro explicam a importância da educação antirracista como ferramenta de transformação social e educacional

FONTEPor Beatriz Pecinato, do Jornal da USP
Pesquisa realizada pela ONG Nova Escola aponta que 80% das principais vítimas de racismo no ambiente escolar são os alunos (Foto: Freepik)

Iracema Santos do Nascimento, professora da Faculdade de Educação (FE) da USP, define como característica principal da educação antirracista – seja no ensino básico ou superior – o enfrentamento ao apagamento da contribuição negra em todas as áreas da produção cultural.  Essa modalidade de educação, segundo a professora, traz pessoas negras como referência de produção. Atualmente, existem leis e medidas que incentivam as escolas e professores a exercitar essa prática. Entretanto, a implementação de uma educação antirracista efetiva, principalmente no ensino básico, ainda enfrenta alguns desafios, segundo uma pesquisa realizada pela ONG Nova Escola

O estudo atestou que 87% dos educadores acham extremamente relevante trabalhar com uma educação antirracista, mas apenas 27% dos docentes analisados se sentem bem preparados para falar sobre o tema. Além disso, 80% das principais vítimas de racismo no ambiente escolar são os alunos, seguidos dos professores, que correspondem a 30%, e outros profissionais, 13%.  

Racismo estrutural 

Iracema Santos do Nascimento (Foto: Arquivo Pessoal)

Quando a expedição portuguesa chegou ao Brasil em 1500, havia um pressuposto que os povos não europeus – especialmente a população dos continentes da América do Sul, africano e asiático – eram racialmente inferiores aos povos brancos e europeus. De acordo com Iracema, essa crença fundamentou o projeto colonial e organizou as relações sociais. É dessa forma que surge o “racismo estrutural”, conceito utilizado para explicar como o racismo está na base da formação da sociedade brasileira. “Na educação, sobretudo, o racismo se manifesta pelo apagamento e silenciamento dos conhecimentos produzidos por africanos e afrodescendentes no currículo, seja na educação básica ou no ensino superior”, explica Iracema.

Para Marcelo Rosanova Ferraro, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (Lab-Mundi) da USP, o racismo estrutural ainda reverbera de inúmeras formas na educação. “Primeiramente, é preciso reconhecer o abismo que há entre a média de estudantes brancos – com uma série de privilégios no acesso à educação – quando comparada à maioria dos estudantes afrodescendentes, que enfrentam uma série de entraves e dificuldades no acesso à educação”, explica. 

Além disso, Ferraro acrescenta que a formação de professores também é impactada pelo racismo estrutural. Embora docentes negros e indígenas atuem na educação, existe um predomínio de professores brancos em escolas mais privilegiadas, ou em postos mais bem remunerados no colégio. Na universidade, essa diferença pode ser ainda mais evidenciada. “O racismo estrutural não está só na educação enquanto discurso; está na própria hierarquização de professores e estudantes com acesso desigual ao ensino, tanto no ensino básico, médio quanto no superior”, comenta. 

Para o pesquisador, também é importante discutir o papel do racismo estrutural na naturalização de desigualdades raciais que são socialmente construídas, como tratar a presença ou ausência de pessoas brancas e pretas em determinados espaços e posições como algo esperado. 

Medida Estatal 

Marcelo Ferraro (Foto: Universidade Brown)

Em 2003, foi criada a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura dos povos africanos e afro-brasileiros no currículo de todas as escolas, desde o ensino fundamental até o ensino médio. De acordo com Iracema, essa legislação é fruto das reivindicações e proposições dos movimentos negros, desde pelo menos a década de 70. “O político, artista, professor e filósofo Abdias do Nascimento foi o grande vocalizador dessa proposição – de que houvesse uma mudança no currículo do Brasil”, pontua. 

Trinta e três anos depois do início da discussão a lei foi instituída. Para a professora, a demora na implementação da proposição pode ser explicada pelo racismo estrutural, que ainda permeia as relações sociais. “Existe mentalidade arraigada na sociedade brasileira ainda, da inferioridade das pessoas negras. Essa mentalidade não necessariamente é consciente, mas é algo que se infere a partir do modo como a maioria de nós tivemos nossas subjetividades constituídas”, exemplifica. 

Entretanto, a criação de uma medida legislativa não garante seu cumprimento. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Alana e Geledés – Instituto da Mulher Negra, em conjunto com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME) – analisou como as escolas, até o ensino básico, se organizam para implementar a lei 10.639/03 no cotidiano dos alunos. Das 1.200, aproximadamente, Secretarias de Educação que responderam à pesquisa, 58% fizeram alguma adaptação curricular para acomodar a medida. No entanto, apenas 5% do total afirma possuir uma Secretaria com área ou profissional responsável pelo ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Além disso, apenas 8% dos respondentes disseram ter realizado uma dotação orçamentária específica para a implementação dessa lei.

Sobre os dados, Iracema discorre que a maior parte das escolas realizou mudanças nos documentos curriculares, enquanto uma parte menor tomou medidas efetivas para que a legislação fosse efetivamente implementada. “É preciso apoio institucional, que inclui a formação contínua e tempo, para que essa formação aconteça de modo efetivo e que realmente altere a mentalidade do professorado”, exemplifica.  

A implementação da lei não foi realizada de forma simplificada. Um dos entraves, segundo Ferraro, foi a resistência apresentada por alguns setores sociais, tanto dentro das escolas – diretores, coordenadores e professores mais conservadores ou despreparados – como civis – pais, mães e responsáveis –, que entendiam essa agenda como diretamente vinculada a um movimento progressista. 

Educação antirracista

A educação antirracista surge, então, para criar meios pedagógicos para enfrentar situações de agressões raciais que acontecem na sociedade brasileira cotidianamente – e formas de discriminação mais sutis –, que não excluem o ambiente escolar. 

Além disso, essa modalidade de ensino está além de ser uma “educação que não reproduz o racismo”. Para Ferraro, é preciso que essa educação seja capaz de formar estudantes e futuros cidadãos que combatam o racismo cotidiano que enfrentarão e vivenciarão ao longo de suas vidas. Por isso, acredita que é fundamental que haja políticas públicas de ação afirmativa para o ingresso de pessoas afrodescendentes nas universidades. “É fundamental que todo aquele que exerça uma educação antirracista se forme dentro dos cânones da pedagogia, mas também levando em conta os estudos de intelectuais negros”, exemplifica. 

De modo geral, como atesta a pesquisa da ONG Nova Escola, o professorado da educação básica afirma não possuir conhecimentos suficientes para desenvolver um projeto de educação antirracista no que diz respeito a apresentar produções de pessoas negras como referência. Para a professora, a maioria dos profissionais da educação não foi formada com um referencial positivo em relação à produção de conhecimento pela população negra. “Por isso, existe a necessidade de estudo e formação contínua desses profissionais, para que eles formem e transformem seu repertório”, comenta. Entretanto, essa não é uma tarefa individual. O professorado, como comenta Iracema, necessita de apoio da escola – que, por sua vez, necessita do apoio das instâncias centrais do sistema de ensino – para que essa transformação aconteça de forma efetiva. 

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