“O que manda em nós é sempre o mais antigo, sujeito a novas racionalidades”
A polêmica em torno do Zoo humano – Exhibition B (com atrizes e atores negros enjaulados, amordaçados), prevista para ser apresentada no Brasil a partir de março de 2016, nos faz aproximá-la das contendas que envolvem a blackface. Partícipes de um mesmo sistema de organização e significação, o zoo humano e as máscaras negras repõem o debate sobre arte, representação e racismo na ordem do dia e nos convida a pensar em rotas capazes de restituir ao debate os temas relativos às formas culturais como práticas de um tempo e lugar, portanto, como práticas políticas e educativas.
por Rosane Borges[1] via Guest Post para o Portal Geledés
Das coisas que se repetem
Alguns enunciados interrogativos, por não se prestarem a rápidas e fáceis soluções, nos acompanham por uma vida toda. Todas nós, de uma maneira ou de outra, somos/estamos engajadas em questionamentos que se mantém em nosso encalço à espera de algum esforço de compreensão. Quando consideramos que encontramos as respostas, elas se mostram insuficientes, precárias, inválidas, com consistência igual à das fumaças. Como diria Leibiniz: “A lógica de um pensamento é como um vento que nos impele, uma série de rajadas e de abalos. Pensava-se estar no porto, e de novo se é lançado ao alto mar”.
A famigerada “blackface”, que pulula aqui e ali, e a apresentação itinerante “Zoo humano”, também chamada de “Exhibit B”, são dois “acontecimentos” que nos reenviam aos enunciados interrogativos que insistem, persistem e nos lançam novamente ao mar tempestuoso, em busca de alguns endereços de resposta. Aos fatos.
1) Black face. A título de lembrete, o acirrado debate em torno da reemergência da blackface, recurso de tempos atrás utilizado em peça dos nos nossos tempos, “A mulher do trem”, teve diversos desdobramentos. O mais vistoso foi a suspensão do espetáculo e, no lugar, a realização de um debate no Itaú Cultural, o patrocinador da peça, no dia 12 de maio.
Dirigida por Fernando Neves, “A mulher do trem”, da companhia “Os fofos”, retrata um Brasil pequeno burguês e bonachão. O cenário é a sala de visitas de uma família de classe média, na qual transitam personagens tipo-ideais. A companhia esclareceu a respeito das escolhas estéticas que guiam “A mulher do trem”: baseada nos formatos populares de circo-teatro, a peça visa ridicularizar “tipos sociais” com comportamentos grotescos. As máscaras caricaturais prestam-se a esse intento.
Para os que avaliam o episódio pelo primado da arte pela arte, a peça não pode ser considera racista, já que as máscaras são um artifício estético arcaico do circo e do teatro para denunciar a família burguesa. Texto e contexto, estética e ética são pares indissociáveis. Por isso, acredito que devemos nuançar a ideia segundo a qual os conteúdos da forma artística devem se sobrepor às reivindicações ideológicas.
As denúncias contra a peça se basearam no fato de que blackface é um recurso que desumaniza, avilta, aniquila o outro, cujas raízes remontam à Commedia DellÁrte e aos menestreis do século XIX nos Estados Unidos. Como se vê, o recurso se espraiou nas diversas linguagens e expressões artísticas como o teatro, cinema, TV, carnaval. Originariamente a serviço da aristocracia branca escravocrata, a “blackface” traz o signo da destituição. Na segunda metade do século XX, foi banida e se transformou em instrumento de denúncia do racismo. Farta literatura certifica a carga negativa desse recurso. O filme “A hora do show”, de Spike Lee, é um dos exemplos mais perturbadores da crítica às mascaras negras.
Chama atenção a reincidência de um artifício que foi banido do teatro, do cinema e da TV pela sua rigidez sígnica, com sentidos regrados. À maneira de incêndios florestais, a “blackface” vem se espalhando no tecido social: virou prática costumeira em calouradas universitárias, festas surpresas, confraternizações e similares.
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2) Zoo humano – Exhibit B. E por falar em reincidências… Eis que ficamos sabendo das pretensões de Brett Bailey, artista sul-africano, de trazer para São Paulo, em encontro internacional do teatro, em março de 2016, o “zoo humano”, uma exibição que se afigura um misto de peça teatral, exposição de arte e performance. O ator pretende apresentar “Exhibit B” em várias capitais brasileiras.
No “Exhibit B” atrizes e atores negros aparecem em jaulas e presos a correntes, passivos, mudos, amordaçados, agredidos, a mercê do olhar do outro. Em suma, Bailey reatualiza as barbaridades da escravidão. O diretor elucida os motivos do grotesco que, assim como “A mulher do trem”, fundamenta-se na melhor das intenções, é impulsionado pelo espírito da denúncia: mostrar o abjeto, os maus-tratos praticados com a população negra durante o período colonial. Essa motivação política liga-se subterraneamente com as discussões, agora clássicas, sobre o papel político e educativo de mostrar o horror e o abjeto que aniquilou grupos humanos com vistas a permanecer na memória histórica e, assim, evitar sua trágica repetição. Neste particular, a experiência do Holocausto judeu é emblemática.
Uma ressalva, no entanto, se impõe: a visibilidade do horror, das experiências traumáticas deve ser produzida por uma via que mostra/incrimina o passado sem reatualizá-lo. Quer me parecer que tanto a blackface quanto o Exhibit B não possuem força pedagógica para realizar essa operação. Pior: repetem o que deve ser evitado. A situação de passividade que essa exibição provoca engessa os papeis dos humanos e dos desumanos em cena. Recentemente, escrevi artigo intitulado “Sobre imagens intoleráveis” que tangencia a complexa questão. Nele, recupero os argumentos do crítico de arte, Jacques Rancière, para quem o sistema de informação não funciona apenas pelo excesso de imagens, mas pela seleção das pessoas que falam e raciocinam, que são “capazes de descriptar a vaga de informações referentes às multidões anônimas. A política dessas imagens consiste em nos ensinar que não é qualquer um que é capaz de ver e falar”.
Prosseguindo com Rancière, sustento no referido artigo: as imagens mudam nosso olhar quando não são antecipadas por seus sentidos e não antecipam seus efeitos. O discurso da denúncia no campo imagético deve, obrigatoriamente, promover a mudança do olhar, muitas vezes acostumado a ver o mesmo e a não se escandalizar com o comum e “normal” do mundo. Como se vê, a tentativa de denúncia dessa excrescência chamada “Exhibit B” é um convite ao malogro, pois antecipa os sentidos do destituído, reiterando códigos que só o aprisiona em imagens desumanizantes de si próprio.
Se a intenção é a denúncia pelo choque, pelo absurdamente surpreendente, há quem considere mais producente substituir atrizes e atores negros por brancos. E não se trata de revanchismo barato, mas de uma operação que envolve compaixão (no seu sentido radical) e promove migrações de sentido. Provavelmente, tal subversão provocaria o deslocamento do olhar ao qual se refere Rancière.
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O passado que não terminou
Venho insistindo que o capital das representações não é regido pela boa consciência, tampouco pela intencionalidade; reside, antes, em fundas experiências que se acumulam no repositório cultural que banalmente chamamos de imaginário. À revelia da (boa) vontade do diretor, no primeiro caso, e do ator sul-africano, no segundo, as máscaras e os “quadros vivos” de mulheres e homens negros comunicam algo que não se encerra nos justos intentos, tampouco recebe indulgência por meio do corriqueiro enunciado “não foi isso que eu quis mostrar/dizer”.
O “zoo humano” foi repudiado nos países em que se apresentou ou onde tentou fazê-lo: Alemanha, Londres e França se arvoraram contra o “Exhibit B”. Acusado de promover uma espécie de pipi show (voyeurismo) foi cancelado em Londres após manifestações ostensivas. No Brasil, a contraofensiva já foi hasteada. Petições e chamamentos correm nas redes sociais para que a performance não vingue por aqui.
Escavando o tempo profundo das formas simbólicas, vemos que o “zoo humano” finca raízes em experiências pretéritas. Na primeira metade do século do XX era comum, na Europa, dispensar a negros, índios e esquimós tratamento equivalente aos que se dispensavam a animais, enclausurando-os em zoológicos humanos. Pessoas brancas observavam os “quase humanos” em cativeiro. Tem-se registro de africanos em zoos em Antuérpia, Basileia, Berlim e Londres. Extintos durante a II Guerra Mundial, os zoológicos humanos tiveram como saldo a morte de centenas de mulheres e homens negros.
Em mergulho profundo, vamos mais longe. Qualquer semelhança do zoo humano com o gabinete de curiosidades (que deram origem aos museus) dos séculos XVI e XVII não é mera coincidência. Os gabinetes de curiosidades se constituíram em um acúmulo, para o olhar ocidental, de objetos raros e insólitos, estranhos e exóticos, bizarros e pitorescos. O espanto, a atração e a repulsa pelo anormal, pelo disforme, passam a ser um polo de aglutinação de homens e mulheres em espaços públicos. Esses gabinetes serviram para delimitar fronteiras entre os civilizados e os bárbaros, os normais e os desviantes. Padeceu com esse olhar “curioso”, a sul-africana, Sarah Baartman, mais conhecida como Vênus Hotentote, que teve seu corpo abusivamente mostrado em espetáculos circenses, exposto em mostras de ciência, servindo para definir a concepção moderna da mulher negra para o mundo europeu. O corpo de Vênus Hotentote foi utilizado para confirmar a normalidade e civilidade europeia. Pelos outros deformados, anormais, estranhos, risíveis, o eu confirmava a sua retidão, normalidade, oferecendo um padrão universal de homem.
Muitas feministas negras apontaram os efeitos nefastos das imagens reducionistas: Ângela Davis considera que o estupro está na base da desumanização da mulher negra pelo homem branco, o seu proprietário. Lélia Gonzalez incorpora as categorias de mucama, da empregada doméstica e da mãe preta para, de uma ótica psicanalítica, avaliar como funciona engenhosamente o racismo brasileiro. Angela Gilliam também assinala a sexualização das mulheres negras como forma de controle social, o que define o seu papel e mantém o controle do imaginário sobre elas.
No que diz respeito à mulher negra, as significações parecem ser regradas e, em grande medida, imutáveis. O que parece se confirmar em imagens com as quais nos deparamos cotidianamente na paisagem visual dos nossos dias: recebi, via facebook, uma fotografia de um anúncio de emprego. O cartaz, sem nenhuma cerimônia, declama: “Oportunidade no cinema: contrata-se atriz negra para papel de empregada doméstica em filme nacional”. A produtora contratante é de Brasília.
Permanência e mudança: qual o lugar da arte?
Nesse movimento pendular entre permanência (de signos enrijecidos, inflexíveis vocalizados por formas artísticas como blackface e Exhibiton B) e mudança (signos capazes de habitar outros sítios de significados) é preciso dar mais uma volta no parafuso, um passo essencial, considero, para a constelação de argumentos que o tema mobiliza. As formas culturais, nas quais se incluem as artísticas, são sempre reconfigurações de expressões antigas. O antigo forma e (re)modela o novo. Insistimos: O que faz com que “esses recursos” artísticos ganhem fôlego e permaneçam como um código facilmente reconhecível?
O teórico e crítico cultural Raymond Williams nos fornece algumas pistas. Para ele, mudanças culturais ocorrem de maneira desigual, de modo que podemos ser influenciados por experiências, práticas, valores, artefatos, instituições muito depois de elas terem perdido sua centralidade nas trocas sociais. Segundo Williams, existem quatro tipos de práticas culturais: emergente, dominante, residual e arcaica. Irei me deter, brevemente, nas duas últimas.
Ao passo que o arcaico se refere às formas históricas que não servem mais para nenhuma função cultural reconhecida (lembremos a substituição do papiro pelo papel), Williams vê o residual como aquilo que pode permanecer na memória coletiva, tornar-se objeto de desejo, ser usado como um recurso para a construção de laços sociais (o caso do vinil, da máquina de escrever). Tal qual o poema Áporo, de Drummond, (um inseto cava, cava, até achar escape), o conteúdo residual pode voltar à cena e se tornar um elemento propagável. Na trilha de Raymond Williams, podemos afirmar que a blackface e zoo humano não foram soterrados no campo do arcaico, pois deslizam no território das referências simbólicas e, na condição de residual, cavam, insistem.
Tanto nas fronteiras da estética quanto da política, costuma-se dizer que é impossível criar novas configurações sociais sem de alguma maneira suplantar ou mesmo destruir as velhas. Sabe-se, porém, que a ruptura radical é algo impossível na seara das produções humanas. Até mesmo autores, como Saint-Simon e Marx, que insistiram na importância da mudança revolucionária, consideram que nenhuma ordem social pode conseguir mudanças que já não estejam latentes dentro de sua condição existente. É preciso identificar as profundas continuidades que subjazem às mudanças pretendidas.
Ora, se o papel da arte é mudar os lugares de sentido, deslocar, transfigurar o lugar-comum, transmutar… a sua função política (instalada no campo da denúncia no caso em tela) reside exatamente em perturbar as representações já consolidadas e construir novas referências. Mais uma vez recorrendo a outro artigo meu (“Oscar 2015 e o filme Selma: uma agenda de combate ao racismo e sexismo”), lembro, pelas mãos de Rancière, que a arte é o ponto extremo de uma mudança polêmica do sensível, que rompe com as categorias estabelecidas. “A arte restabelece os critérios para reconfigurar o território do visível, do pensável e do possível”. Dessa reconfiguração, o trabalho artístico poderá reunir o mosaico possível de acepções do humano, dando a ver a pluralidade e a irredutibilidade dos indivíduos. A não-filiação a esse primado provoca as justas e explicáveis manifestações contrárias ao horror que se avizinha. Reajamos!
[1] Jornalista, pós-doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, integrante do grupo de pesquisa Midiato da mesma Universidade, integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial), coordenadora do curso de especialização da FAM e professora da UEL
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