Racismo, machismo e capitalismo: um triângulo amoroso

Hoje quem escreve neste espaço é a cineasta Viviane Ferreira. Tenho grande admiração pela Vivi e acompanho seu trabalho há algum tempo. Para mim, é uma enorme satisfação ter uma pessoa forte, solidária e talentosa como a Viviane no conselho político do nosso mandato, e também no Coletivo Racial do PT e na juventude do Garantia de Luta.

Por Paulo Teixeira, do Brasil 247 #AgoraÉQueSãoElas

Viviane nasceu na Bahia e vive em São Paulo. É advogada e cineasta, preside a Associação Mulheres de Odun e é sócia-fundadora da Odun Formação & Produção. Entre outros trabalhos, dirigiu o documentário “Festa da Mãe Negra” e o curta “O dia de Jerusa”, que integrou a seleção oficial do Festival de Cannes em 2014.

Convidei Viviane para escrever aqui por duas razões: a primeira razão é que ela aborda de forma muito lúcida e bela o assunto tratado neste texto, um tema que eu considero urgente, que é a obscura combinação entre racismo e machismo. A outra razão é que fiquei entusiasmado com a campanha #AgoraÉQueSãoElas, lançada no último fim de semana, na internet, pela Manoela Miklos.

Em poucas palavras, a proposta é convidar mulheres para ocuparem os espaços de fala mantidos por homens, em jornais, revistas, sites e blogs. A ideia é uma resposta à profusão de homens que vinham comentando em suas colunas sobre assédio sexual, aborto, estupro, direitos sexuais e reprodutivos, violência contra a mulher e outros temas que despontaram com força total no final de outubro, por força de uma confluência de fatores. Em vez de falarmos sobre elas, por que não nos colocarmos na posição de ouvintes?

Ao longo desta semana, mulheres publicarão diariamente no meu Facebook. E escolhi a Vivi para ocupar este espaço semanal aqui no Brasil 247. Obrigado, Vivi.

R.M.C., o matrimônio perfeito

Por Viviane Ferreira

O matrimônio firmado entre o racismo e o machismo é uma das relações mais duradouras da história. A concentração e a manipulação do poder, ópio que alimenta essa relação, permitiram inclusive que o casal evoluísse para um triângulo amoroso: racismo, machismo e capitalismo.

Os amantes, conhecidos como R.M.C., vivem no troca-troca de posições, na disputa para ver quem melhor representa a tríade. Essas coisas de casamento em que a competição entre as partes é a pimentinha do amor. O importante mesmo é que em todo dia santo, e dia santo é dia de trabalho, os votos sejam renovados e R.M.C. sigam enamorados rumo à concentração do poder, custe o que custar, doa a quem doer. R.M.C. separados são fortes, mas juntos julgam-se indestrutíveis.

Agora, se representatividade importa para “os donos” da banca, imagina para quem nem figura nas capas de revistas, nos filmes e na programação da TV?

Fui amamentada pelo movimento de mulheres negras, e dos seios desse movimento me alimento da seiva que traça a historicidade da atuação dessas mulheres. Regentes de uma sinfonia capaz de ensurdecer uma sociedade forjada para viver do “espetáculo”, da “estética rasa”, que se furta a encarar seus problemas estruturais. E, ainda assim, entoam: representatividade importa, sim!

Como cineasta negra, entendo que fazer cinema é responsabilizar-me por construir a narrativa de novos tempos, é disputar espaços de representatividade para garantir representação. Por isso gozar deste espaço para falar o que penso, nesses tempos em que a democracia brasileira segue ameaçada. E R.M.C. estão vindo com toda força para buscar alimento para a relação, tragando da pílula do dia seguinte à representação das mulheres negras.

A reivindicação feminina por espaços formadores de opinião vem de longa data. O cinismo dos males estruturantes da sociedade do espetáculo utiliza-se dos institutos da “exceção” e da “concessão” para a manutenção da regra, num cálculo sutil que ajuda R.M.C. a ficarem com a relação cada dia mais sofisticada.

As facetas são muitas: é partido político que lança mulheres à selvageria eleitoreira para cumprir a cota estatutária; são homens e mulheres brancas estudando sobre mulheres e homens negros e se tornando “especialistas”, legitimados por um “canudo” a falar em nome desses indivíduos; é diretor de televisão branco, fazendo série para tratar da sexualidade de mulheres negras; é blogueira negra sendo atacada virtualmente por se “atrever” a falar sobre sua própria existência; é imagem de ativista negra sendo utilizada de forma indevida por instituições do Estado; é coletivo de estudantes negras sendo perseguido em universidades públicas por exigir ações afirmativas; é presidenta tendo sua honra e feminilidade atacadas por articular a criação de um banco internacional com outros países em desenvolvimento; é governador fechando escola na tentativa de impedir que seu Estado contribua para a construção de uma pátria educadora… A lista não tem fim.

Tão antigo quanto o matrimônio de R.M.C., alicerçado num cinismo histórico, é o pacto de irmandade do movimento de mulheres negras, em passos que vêm de muito longe. Isso nunca é demais rememorar. Estamos irmanadas, regendo a sinfonia que executará com maestria a canção de morte de R.M.C. Nessa orquestra, o cinema é o instrumento que sopra cada suspiro do meu pensar. Meu cine

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