Rap eletrônico de Craca e Dani Nega questiona o senso comum

A dupla, que está lançando o single “Peito Meu”, integrante do álbum “O Desmanche”, fala sobre como a arte pode ser usada para contestar e colocar abaixo conceitos tidos como verdades absolutas e chamar a atenção para injustiças sociais

Texto / Amauri Eugênio Jr., do Alma Preta
Imagem / Cacá Bernardes

A primeira audição do som feito por Craca e Dani Nega já deixa evidente que o trabalho feito por eles pode receber adjetivos diversos, exceto que se trata de algo comum.

Parte fundamental dessa impressão está relacionada à junção de música eletrônica com hip hop. Tanto que se tem a sensação de que ali estão presentes elementos diversos, mas cuja junção resulta em algo único. E essa é a marca registrada do duo, que tem como uma das marcas registradas a criatividade, seja na parte musical, seja pela forte presença visual, evidente durante os shows.

Essa impressão fica ainda mais evidente em “Peito Meu”, primeiro single do novo álbum, “O Desmanche” – a música, que tem participação especial de Luedji Luna, foi lançada nesta sexta-feira (13) e o álbum estará disponível para o público daqui a uma semana, no dia 20.

O novo trabalho mostra que Craca e Dani Nega não está na cena musical para brincadeira. Tanto que estamos falando dos vencedores da 28ª edição do Prêmio da Música Brasileira na categoria “Álbum Eletrônico” graças ao trabalho “Craca, Dani e o Dispositivo Tralha”.

Confira a seguir a entrevista que o duo concedeu ao Alma Preta e confira “Peito Meu”, novo som da dupla.

Como e quando vocês começaram a parceria e decidiram formar o projeto? Como as experiências prévias de vocês ajudaram a “dar liga” à dupla?

[Felipe] Fomos apresentados pelo poeta Caco Pontes em um projeto musical dele chamado Baião de Spokens. Desde esse encontro ficou a vontade de dar continuidade a esse namoro entre rap e música eletrônica. Então começamos a experimentar umas aparições juntos em festas de coletivos, viradas culturais e assim por diante – algo meio improvisado, mas foi dando um resultado muito bom. E foi amadurecendo.

Quando decidimos gravar o disco, intensificamos essa parceria e o laboratório composicional. Esta é uma relação que já dura faz alguns anos e que está baseada em admiração mútua e respeito pelas especificidades de cada um. Surpreendentemente, esta parceria pouco usual e de sonoridade demasiado peculiar foi reconhecida na 28ª edição do Prêmio da Música Brasileira como o melhor álbum na categoria Música Eletrônica.

As letras e as rimas têm mensagens fortemente ligadas à igualdade racial e ao feminismo. Como as lutas cotidianas e experiências pessoais influenciam no processo de composição?

Acreditamos que a arte precisa ser um instrumento político de cura, transformação e provocação, e o artista tem a missão de discutir o tempo que lhe cabe viver. Sendo assim, narrar as nossas próprias trajetórias e questionar as estruturas políticas e de convivência que nos cercam têm sido carros-chefes em nossas composições. Essa é uma forma de sermos também protagonistas das nossas histórias, que precisa e deve ser contada por nós.

Dani, quais são as suas influências musicais? Quais foram usadas em “O Desmanche”? E como a sua experiência como atriz ajuda na sua trajetória musical?

Ultimamente, tenho me encantado com as métricas do Kendrick Lamar, o flow e a sonoridade de GoldLink e de Anderson Paak, a poesia de Djavan, o suinguede Jorge Ben, o canto das Clarianas: tenho escutado muito funk e por aí vai. O teatro me ajuda a pensar o espetáculo musical como um todo, a traçar uma linha dramatúrgica para as composições e para o show, e a construir um corpo cênico e performático. Minha escola teatral sempre teve relação muito forte com a música e com o hip hop. Eu me defino como atriz e MC – a mestra de cerimônia da minha própria história. A minha experiência como atriz me ajuda a contar histórias cantando.

A população negra está passando por um momento delicado no que diz respeito à luta pela igualdade racial e ao direito de se afirmar como negra. Quão importante é falar sobre valorização e empoderamento da pessoa negra e abordar abertamente a liberdade de culto de religiões de matriz africana?

Como sabemos, a nossa história foi saqueada. Falar dos nossos e do que é nosso é uma forma de resgatarmos a nossa identidade, autoestima e afetos, para criarmos novas narrativas possíveis no imaginário da sociedade. Protagonizar as nossas vivências é uma forma também de cavarmos buracos e ocuparmos espaços que nos foram negados ao longo da história.

Imagem: Cacá Bernardes

Vocês usam a arte como um meio de militância e de resistência?

Sim. A arte é a mídia de quem não tem voz no establishment e a verdadeira oposição à situação, pois a oposição política está entranhada no sistema. Mas, além disso, a arte convence pela reflexão e pelos afetos, e não pelos argumentos ou determinações iluministas. A arte permite a formação e não apenas a informação. Assim, vivendo este começo de século XXI tão bizarro, violento e desigual, fazemos do palco, do disco, das entrevistas, das imagens e da nossa atuação canais de dissonância contra o discurso oficial.

Veja só, se você ligar o rádio em uma das duas emissoras de notícias principais de São Paulo e ouvir por uma hora, terá a nítida impressão de que está tudo melhorando, indo razoavelmente bem e que não precisamos nos preocupar. Basta delegar as decisões a “eles” que “eles” conduzirão tudo da melhor forma. Sabemos que isso não é verdade, que está tudo piorando e que tem gente sendo morta, torturada e presa sem julgamento ou com provas forjadas, que a polícia está reprimindo com violência e perseguindo familiares, e que a economia está tão ruim ou pior do que antes. Sabemos disso porque artistas estão resistindo e destoando do discurso oficial desde o começo deste processo triste. Não à toa, jornalistas de grandes revistas fizeram lista de artistas a serem boicotados e que artistas estão sendo censurados na TV, imprensa, internet ou mesmo nos contratos que devem assinar para fazer shows. Enquanto houver censura e opressão, haverá arte aos gritos.

Craca, o som e os beats feitos remetem a diversos ritmos. Quais são as suas influências musicais para a composição das melodias e quais foram usadas em “O Desmanche”? E como é o processo criativo?

A música do mundo é a matriz. Não sou preso a nacionalidades, mas gosto dos timbres das nações. Tem muito de latino, um pouco de árabe, outro tanto de africano e muito da minha formação musical acadêmica, que arrasta consigo algo do erudito, do eletroacústico e do jazz. Mas há muita mentira nisso também. Brinco há muito tempo de imitar as coisas. Parece que você tá ouvindo um oud (instrumento árabe), mas é, na verdade, um violino meio quebrado.

 

Estes são truques que a música eletrônica, a principal influência, permite. É importante entender que quem faz música eletrônica tem como instrumento musical o estúdio. E o estúdio, quando é usado como um instrumento, é acima de tudo um laboratório de improvisação, experimentação e caos – muito caos. Porém, é um caos que pode ser facilmente capturado e organizado numa forma narrativa musical. Assim surgem as bases e arranjos de “O Desmanche”: da sucata, do ferro velho todo que a gente encontra em um desmanche e organiza no tempo.

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