Reparação histórica

Governo destinará à reforma agrária um dos mais simbólicos territórios de violência política da ditadura

FONTEO Globo, por Flávia Oliveira
Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo/ Arquivo O Globo)

O governo destinará à reforma agrária um dos mais simbólicos territórios de violência política da ditadura militar no Rio de Janeiro. A Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ), será formalizada como assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Nos fornos da unidade, os corpos de ao menos 12 vítimas do regime foram incinerados nos anos 1970. A área, que abriga sete fazendas em 3.500 hectares, está em disputa há quase três décadas. Em 2012, foi considerada improdutiva pela Justiça; dois anos atrás, desapropriada e destinada ao Incra pela 1ª Vara Federal de Campos.

Ontem, em Brasília, na cerimônia de posse dos integrantes do recriado Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, Kelli Mafort, secretária de Diálogos Sociais da Secretaria-Geral da Presidência, anunciou a inclusão da Cambahyba na reforma agrária à deputada estadual Marina do MST (PT-RJ). O assentamento levará o nome de Cícero Guedes, ativista que se libertou do trabalho análogo à escravidão em lavouras de cana-de-açúcar na infância, em Alagoas, e migrou para Campos. Aprendeu a ler aos 40 anos, integrou o MST, na virada do século foi oficializado no assentamento Zumbi dos Palmares, na área da extinta Usina São João, também no município. Em 2013, foi assassinado a tiros, nos arredores de um acampamento de sem-terra na cidade do Norte Fluminense. Acusado de ser o mandante do crime, José Renato Gomes de Abreu foi inocentado pelo Tribunal do Júri, em 2019.

A cultura da cana-de-açúcar já foi forte em Campos — Foto: Cléber Mendes

A produção e o beneficiamento da cana-de-açúcar no Norte Fluminense ganharam relevância e escala a partir da segunda metade do século XIX. Por volta dos anos 1920, Campos se tornou o maior polo exportador de açúcar do Brasil, com 15% da produção nacional. Foi ali que se deu a transição dos velhos engenhos para as modernas usinas, escreveu Marcelo Carlos Gantos, da Uenf, em trabalho sobre o patrimônio agroindustrial na região. Em 1930, Campos tinha 21 usinas; restavam oito engenhos de aguardente e rapadura. Nos anos 1970, a cidade chegou a 24 usinas, mas terminou o século XX com não mais de uma dúzia.

A Usina Cambahyba foi uma das grandes propriedades agroindustriais do município. Pertenceu desde sempre à família de Heli Ribeiro Gomes. Desativada por completo na safra de 1995/1996, chegou à área total de 6.763 hectares, dos quais 85% foram dedicados à produção de cana. Nos anos do general Emílio Garrastazu Médici na Presidência, protagonizou o crime que a tornaria parte da história do arbítrio no Brasil. Segundo o historiador Lucas Pedretti, representantes e peritos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) confirmaram que ali foram incinerados 12 corpos de presos políticos recolhidos da Casa da Morte, o centro clandestino de tortura em Petrópolis (RJ), e do DOI-Codi, na capital. O ex-delegado Cláudio Antônio Guerra, do Dops, afirmou que “atendia a chamados do capitão de cavalaria do Exército Freddie Perdigão Pereira e recebia os corpos diretamente da equipe do militar”, informa o relatório da CNV.

Em junho passado, a Justiça Federal de Campos condenou Guerra a sete anos de prisão em regime semiaberto por ocultação de cadáveres durante a ditadura. O Ministério Público Federal denunciou o ex-delegado com base em relatos dele próprio no livro “Memórias de uma guerra suja”. Ele está recorrendo. Na Cambahyba, foram incinerados os corpos dos presos políticos Ana Rosa Kucinski Silva, Armando Teixeira Frutuoso, David Capistrano da Costa, Eduardo Collier Filho, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, João Batista Rita, João Massena Melo, Joaquim Pires Cerveira, José Roman, Luís Inácio Maranhão Filho, Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto e Wilson Silva. Fernando Augusto era pai de Felipe Santa Cruz, ex-presidente da OAB-Nacional.

O assentamento da Cambahyba abrigará lotes para 185 famílias. A formalização pelo Incra, explica a deputada Marina, é que organiza a atividade produtiva e a comunidade propriamente, com a construção de casas e escolas. O acampamento já produz hortaliças, aipim, milho, feijão e frutas, como banana, limão, laranja e acerola. Estudos técnicos do Incra e de universidades locais determinarão a vocação do território, que pode incluir também pecuária leiteira, aves e ovos.

— A formalização do assentamento na Usina Cambahyba é uma grande notícia, não só para as famílias, mas para a democracia. É reparação histórica o que testemunhamos — resume.

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