Samba, memória e poesia contra as injustiças do Estado

Cordão leva protesto contra os crimes do Estado durante a ditadura e período democrático às ruas de São Paulo

Fotos e texto: Cristiano Navarro

Os políticos espalham a ideologia do medo. A polícia aterroriza a população com tortura e morte. Os empresários financiam o esquema. O espectador assiste, cala e consente sobre as mentiras publicadas. Grosso modo, caçavam-se “comunistas” durante a ditadura civil-militar, como hoje caçam os jovens de periferia.

Mas no dia da “Mentira” – dia também em que os militares comemoram o golpe de 1964–, um cordão formado por sambistas, movimentos sociais, militantes de partidos de esquerda, coletivos de teatro, ex-presos políticos, familiares mortos pela polícia no período da ditadura e durante a democracia foi às ruas de São Paulo para reclamar o restabelecimento da verdade e justiça sobre os crimes cometidos pelo Estado.

Nos cinco quilômetros percorridos pelo Cordão da Mentira foram apresenta- dos três sambas e um frevo especialmente compostos para o desfile. O caminho escolhido passou por pontos históricos da capital paulistana para a luta contra ditadura civil-militar.

No cemitério da Consolação, onde se encontra o túmulo do ultra-direitista Plínio Corrêa; no prédio da universidade Mackenzie, onde o estudante secundarista, José Guimarães, foi morto pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC) em 1968; na Sede da Tradição Família e Propriedade; no prédio do jornal Folha de São Paulo; e no antigo prédio do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), grupos de teatros encenaram esquetes te- atrais. Além das esquetes, ruas e logradouros foram rebatizados com nome de militantes mortos e placas contextualizando fatos acontecidos nos locais foram colocadas.

A iniciativa do Cordão da Mentira se soma a uma semana de protestos realizados em todo Brasil contra os crimes da ditadura civil-militar. Angela Mendes de Almeida ex companheira do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, torturado e assassinado aos 23 anos, em São Paulo, em 19 de julho de 1971, nas dependências do DOI-Codi, considera “extremamente importante ver a juventude falando contra a impunidade dos crimes da ditadura, que não é só a comissão da verdade. É um capítulo que tem que levar posteriormente a investigação e punição”.

No dia 29 de março, cerca de trezentas pessoas reuniram-se na frente da sede do Clube Militar para protestar contra as comemorações dos 48 anos do golpe de 1964 e da ditadura. O protesto foi encerrado com a repressão policial.

Para Marcelo Zelic do grupo Tortura Nunca Mais, a onda de protestos marca a posição da sociedade civil organizada sobre o assunto.

“É importante a sociedade dizer que não aceita a história de que a violência era dos dois lados. Hoje esses militares de pijama já não têm toda essa força, que querem fazer parecer. Estamos percebendo que o poder é apenas uma sombra do passado”. O militante do Tortura Nunca Mais entende que a punição dos criminosos pode mudar a postura da polícia. “É preciso punir os militares para que os crimes não se repitam. Para que se entenda que esta não é uma forma errada de resolver as questões. Na Baixada Santista, por exemplo, os grupos de extermínio [policial] continuam atuando. Somente punindo estes militares é que a polícia vai rever sua relação com protestos e manifestantes e parar de usar armas de choque ou balas de borracha”.

Durante o trajeto do desfile nenhum incidente for registrado. Além dos cerca de mil “foliões” presentes ao cordão, policiais à paisana se misturavam ao grupo com câmeras fotográficas.

Morto como comunista

giselia

Giselia Barbosa Lima esteve presente no Cordão da Mentira para manifestar sua indignação carregando uma foto em uma das mãos e um filho de dez meses no outro braço. Na madrugada do dia 18 de março, seu filho, o estudante Henrique Barbosa da Silva, foi executado pelos policiais militares Luiz Vianna Labella e Cássio Andrade Bigas com dois tiros na cabeça. Segundo o DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), os PM´s tentaram simular uma resistência para ocultar o assassinato do rapaz e foram presos em flagrante por homicídio qualificado. Antes do flagrante, não foram poucas as emissoras de TV que compraram a versão da polícia.

Eram 2 horas da manhã, quando Henrique, funcionário do Mc Donald ́s, voltava do trabalho. No mesmo momento, o supermercado Ki Preço Baixo foi assaltado. Uma das sócias do estabelecimento é mulher do cabo Labella. Depois de executar o estudante, os policiais transferiram o corpo do estudante de lugar e colocaram uma arma em suas mãos.

“Meu filho nunca tinha visto uma arma. Ele estava vestindo o uniforme do trabalho quando foi morto”, conta a mãe de Henrique presente no Cordão da Mentira. Para a dona de casa, que hoje se soma ao movimento das Mães de Maio a morte de seu filho tem o mesmo motivo da morte de centenas de jovens que morrem todos os anos assassinados pela polícia. “Mataram ele porque era negro pobre e tava passando na hora errada. E ainda disseram que ele era um bandido. Os bandidos não estavam com uniforme do Mc Donald ́s, estavam com uniforme de militares. Isso é a ditadura dos ricos contra os pobres”.

Segundo levantamento da Corregedoria, em 2011, a polícia militar foi responsável por um em cada cinco homicídios na cidade de São Paulo. Dados apontam que 290 pessoas foram vítimas de casos de resistência seguida de morte ou homicídios dolosos cometidos por policias fora do trabalho.

O número de vítimas nessas circunstâncias representa 22,3% do total. Ao todo, 1.229 pessoas foram mortas no período analisado.

Solidária, a militante ex-exilada política Angela Mendes de Almeida pontua fortalecendo a denúncia de Giselia, “É importante esclarecer os crimes da ditadura. Mas estamos falando também dos crimes de hoje, das torturas e execuções sumárias. Dos mortos nas periferias, dos mortos nos crimes de Maio. Quer dizer, a impunidade dos crimes de ontem é o que facilidade a continuidades dos crimes”.

 

 

 

Fonte: Brasil de Fato 

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