Se de perto ninguém é normal, o que é loucura?

(Foto: João Godinho)

Lei não aboliu a internação, mas quem a decide é o médico

Por Fatima Oliveira

Talvez tenha razão quem disse que “ninguém enlouquece, apenas piora”, já que incursionar pela história da loucura, sua contextualização, suas representações sociais e o conceito de doença mental requer considerar a linha histórica das respostas da família, da sociedade, do Estado e da ciência diante de doenças e doentes mentais, que dependem da época em que a loucura é vivida. Muitos abominam, mas resgato a palavra loucura por considerar que, apesar da polissemia e da gama de subjetividade, nela cabe tudo o que permite o diagnóstico de insanidade mental.

A Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216, de 6.4.2001) é um marco do compromisso com a cidadania de quem porta doença mental, até então sob a batuta de um modelo de atenção que priorizava a segregação de quem era tido como louco numa época em que o conceito de louco e o de loucura eram embasados pela eugenia e uma visão higienizadora da vida social, cujas subjetividades englobavam indiscriminadamente quem portava qualquer transtorno mental visto como incapacitante (ou inconveniente?) para a vida em sociedade; então, qualquer desvio da rota tida como normal era motivo para trancafiar alguém, sob o rótulo de louco, em depósitos de humanos degredados ad eternum. Eram os manicômios ou hospícios…

A lei não aboliu a internação, todavia há denúncias na imprensa sobre uma campanha contra a internação psiquiátrica necessária e a insuficiência de leitos psiquiátricos – argumentam que escassearam após a reforma psiquiátrica – e que mesmo com indicação médica de internação dificilmente consegue-se viabilizá-la. Indicar internação hospitalar é um ato médico, jamais prerrogativa da família ou de quem está doente. A Justiça, quando “manda internar”, precisa do respaldo de indicação médica, pois juiz não é médico. A pergunta número um é se os leitos psiquiátricos disponíveis no país correspondem à estimativa de doentes mentais que podem necessitar de internação curta ou prolongada. Não sei responder.

Eticamente, é uma correspondência essencial, pois é a baliza que nos dirá com segurança se a atual política de saúde mental contempla a necessidade de internação, pois seria um grave defeito ideológico e científico desconhecer que há situações em que o doente mental necessita ser hospitalizado, seja em nome de sua segurança e dos que o rodeiam, ou porque há tratamentos que só são ministrados em regime de internação. O que não é o mesmo que “hospitalização da doença mental”. Sou contra o ideário da “hospitalização”, inclusive da morte.

O teor do discurso que alega insuficiência de leitos psiquiátricos expressa o vivenciado e o sentido por cuidadores de doentes mentais. Cabe indagar se não contém um olhar informado, em certa medida, pelo sufoco das contemporâneas “famílias pequenas” no trato com o sofrimento mental. São vozes impactantes, de dor e de desamparo que nos possibilitam falar que há familiares que são sobreviventes da doença mental, que precisamos respeitar e dar os merecidos descontos.

O movimento antimanicomial possui méritos inegáveis; acertos e desacertos; problemas, conquistas e desafios. Tudo de uma complexidade enorme e profunda. Porém, não é detentor do monopólio da verdade. No essencial, é mais uma ideologia datada sobre a doença mental que em muitos momentos se choca com a vivência familiar e com o doente mental. Pensar sobre um tema e viver o drama do tema são situações díspares que informam visões diferenciadas diante da mesma situação.

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