Uma biblioteca contra a indiferença

Os livros que trazem a reflexão fundamental de pensadores negros brasileiros sobre o racismo e a luta contra a discriminação

FONTEDe Piauí, por Mário Augusto Medeiros da Silva,
Ilustração: Romulo Arruda

Em janeiro de 1937, Carolina Maria de Jesus saltou de um trem na Estação da Luz, em São Paulo. Vinda de Sacramento, no interior de Minas Gerais, ela ficou impressionada com a multidão que transitava pelas ruas da capital. Todas as pessoas, além de bem vestidas, pareciam muito apressadas. Também chamou sua atenção outra característica dos moradores de São Paulo: a indiferença. Durante décadas, foi esse sentimento que a acompanhou mais de perto, enquanto ela trabalhava como catadora de despejos nas ruas da cidade. Até que, em 1960, foi alçada à fama, com a publicação de Quarto de despejo: diário de uma favelada, as memórias que escreveu nas horas vagas e foram compiladas pelo jornalista Audálio Dantas. O sucesso do livro foi gigantesco, mas não durou muito. Suas obras seguintes causaram menos impacto, e a escritora negra imergiu outra vez na indiferença, até sua morte em 1977, aos 62 anos.

Nas décadas posteriores sua obra praticamente cairia no esquecimento não fossem as ações editoriais pontuais do Círculo do Livro e da Ática, nos anos 1980 e 1990, para um clube de leitores e para o público infanto-juvenil, respectivamente. Foi preciso esperar até 2021 para que os livros de Carolina Maria de Jesus retornassem ao público pela Companhia das Letras, devidamente restituídos de sua importância social e literária. Junto com esse reconhecimento editorial, veio uma mostra de grande porte, Um Brasil para os brasileiros, realizada no mesmo ano pelo Instituto Moreira Salles¹, sobre a vida e a arte da escritora, em diálogo com a produção de artistas plásticos negros contemporâneos.

Indiferença parecida com a enfrentada por Carolina Maria de Jesus atingiu um número incalculável de artistas, escritores e pensadores negros no Brasil, sem falar dos indígenas. Foi como se eles não existissem, ou se apenas alguns existissem, em pequeníssimo número, desde que estivessem bem assimilados ao sistema intelectual e artístico dominante deste país racista.

Então, na entrada do século XXI, sinais de mudança começaram a aparecer no horizonte. Diante das crescentes pressões do antirracismo organizado, liderado por movimentos negros, das ações afirmativas de duas décadas no ensino superior, das políticas de fomento cultural e de inclusão, o mercado editorial se viu impulsionado a ampliar o escopo de suas publicações.

Assim, um número cada vez maior de intelectuais e escritores negros começou a ser incluído no elenco das editoras, que agora não os publicam apenas por questões de consciência. Além disso, eles representam uma direção inédita para a vida cultural brasileira, ao abri-la à diversidade, ao trazer questões, experiências e conhecimentos novos – ou muito antigos, atualizados – essenciais à compreensão do país. O interesse se reflete em lançamentos em diferentes áreas, das ciências sociais à história, da filosofia à política, da literatura aos quadrinhos.

A diversidade, com relação à cor negra, se apresenta como um negócio que pode ser interessante e lucrativo, tendo em vista o volume de publicações. Também há sinais de que já não é possível admitir a ausência de intelectuais negras e negros, indígenas, mulheres e homens trans nos principais catálogos editoriais ou em mostras artísticas do país. Todo mundo ganha com isso, especialmente o pensamento nacional, e espera-se que também ganhem os intelectuais que produziram esse pensamento por décadas, a maioria às próprias custas, sentindo na pele o drama de existir como tais.

Apesar do número crescente de títulos de autores negros, o mercado editorial tradicional não é uma instância do antirracismo brasileiro. É preciso lembrar como foram e são importantes as autoedições e a publicação das obras por meio da cotização. Deve-se lembrar, ainda, das pequenas editoras e gráficas comprometidas com os movimentos negros e com a publicação de autores brasileiros ou estrangeiros (sobre as quais escrevi em A descoberta do insólitoliteratura negra e literatura marginal no Brasil, 1960-2020, Edições Sesc). Exemplos desses empreendimentos são a Mazza Edições, Nandyala Livros, Editora Malê, Kapulana, Ciclo Contínuo Editorial, Kitabu Livraria Negra, Pallas Editora, Selo Negro, entre outras. Elas abriram caminhos e romperam bloqueios, arriscando seus poucos recursos nas publicações, em uma época que outras editoras não ousavam fazê-lo.

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