UnB

FONTEpor Sueli Carneiro
Foto: Marcus Steinmayer

Há muito havia desistido da expressão vontade política pela banalização em que ela foi lançada. No entanto, um novo evento repõe em meu glossário um sentido efetivo para essa expressão. É a adoção pela Universidade de Brasília (UnB) do sistema de cotas para negros no marco institucional de um Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial daquela universidade. Segundo o release da UnB, o plano de metas consiste num “conjunto de medidas que pretendem gerar na UnB uma composição social, étnica e racial capaz de refletir minimamente a situação do Distrito Federal e a diversidade da sociedade brasileira como um todo.

O fundamento supremo do Plano de Metas é o propósito de promover a inclusão social de negros e indígenas por meio do acesso ao ensino superior, em um contexto de políticas de ação afirmativa (…)  Os três pontos básicos do plano são: o acesso de negros e indígenas via política de ação afirmativa; a permanência do estudante que ingressa via política de ação afirmativa; programa de apoio ao ensino público do Distrito Federal”. Nessa perspectiva adotada pela UnB, a diversidade étnica e racial deixa de ser peça retórica de discursos ufanistas sobre a brasilidade, com função tática de acobertar desigualdades, como é usual, para tornar-se fundamento para a promoção da igualdade e realização efetiva da democracia racial, a partir do pleno reconhecimento das desigualdades raciais e étnicas persistentes na sociedade brasileira. Reflete, também, uma escuta sensível e generosa das demandas colocadas ao Estado pelos amplos debates que vêm sendo travados na sociedade sobre o tema da inclusão racial e étnica.

É um exemplo contundente de vontade política, de compromisso real com mudanças no sentido da democratização do acesso à universidade, de exercício da autonomia universitária e, sobretudo, de responsabilidade, para além do acesso, com a realização de vocações acadêmicas por meio do apoio à permanência de alunos negros e indígenas admitidos na universidade pelo sistema de cotas. E, por fim, um decisivo compromisso com o fortalecimento do ensino público, um pré-requisito para que um dia políticas específicas possam deixar de ser o único instrumento disponível de equalização das oportunidades de acesso ao nível universitário para os segmentos sociais historicamente discriminados. Na contramão dessa visão, editoriais raivosos, dissimulados em pretensa ironia, esforçam-se na inviabilização de propostas como essa, revelando a rearticulação dos mesmos conglomerados e grupos de interesses que se articularam há pouco tempo para derrubar a proposta de cotas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). Esses atores contam, neste momento, com porta-vozes plantados em poderosos veículos da imprensa nacional. Parece que chegaram à conclusão de que a briga agora é para “profissionais”, e eles correspondem.

Artimanhas retóricas típicas dos especialistas na prática política de “melar” um debate ou uma proposta entraram em ação. Nelas ignora-se intencionalmente o estágio em que se encontra o debate sobre a adoção das cotas no Brasil e os consensos políticos e acadêmicos sobre o tema da racialidade já alcançados. Esgrimem, reeditando o nosso anacrônico, conveniente e manipulador daltonismo social, com os superados argumentos da impossibilidade de definir quem é negro no Brasil. Tranqüiliza a firmeza dos princípios que embasam a decisão da UnB reafirmados na declaração de seu vice-reitor Timothy Mulholland sobre essa política inédita em universidades federais. Diz ele que “mais do que a primazia entre as universidades federais, o que é importante é que a UnB está aderindo a um projeto de diminuição da exclusão social (…). Além da questão da inclusão social, a nossa intenção é criar uma elite negra no país, já que os negros sempre estiveram excluídos das nossas universidades”. Um exemplo amparado na longa tradição da UnB de aportar propostas e experiências inovadoras para o conjunto das universidades federais no tocante ao acesso à universidade. É isso o que vimos esperando das políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial e, no entanto, o marco legal para elas proposto, o Estatuto da Igualdade Racial, que estava pronto para a ordem do dia do plenário da Câmara dos Deputados, após ser aprovado numa Comissão Especial, foi retirado de pauta em março de 2003 pelo governo para avaliação, processo longo que ainda não se completou.

O noticiário do último fim de semana agrega mais preocupações sobre o destino desse estatuto, pelo que ele assinala sobre as resistências do governo em relação à criação do Fundo de Promoção da Igualdade Racial previsto em seu capítulo IV. Vontade política em políticas públicas se expressa, sobretudo, na clara indicação de suas fontes de financiamento, sem as quais tudo se resume a mera retórica ou demagogia.

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