Universidade federal lança vestibular específico para transgêneros, travestis e intersexuais

Candidatos deverão encaminhar na inscrição um texto contando sua história de vida Foto: Dibyangshu Sarkar / AFP
Segundo organizadores, iniciativa é inédita; Unilab oferece 120 vagas em diversos cursos de graduação nas unidades do Ceará e da Bahia
Por Paula Ferreira, do O Globo 
Candidatos deverão encaminhar na inscrição um texto contando sua história de vida Foto: Dibyangshu Sarkar / AFP

A Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) lançou, na terça-feira, um vestibular específico para candidatos transgêneros e intersexuais. A instituição, que é federal, disponibilizará 120 vagas em 15 cursos presenciais da instituição em três campi da Unilab, dois no Ceará e um na Bahia. De acordo com os organizadores,  a iniciativa é inédita no país.

As inscrições começam no dia 15 de julho e vão até o dia 24. No edital , a universidade destaca que “poderão concorrer às vagas ofertadas neste edital estudantes transexuais , travestis, pessoas não binárias e intersexuais oriundos de qualquer percurso escolar, e que tenham concluído o ensino médio.” A prova será realizada no dia 21 de agosto. As vagas são para ingresso já em setembro deste ano.

Em janeiro desse ano, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) publicou um edital para minorias, mas a população LGBT concorria junto com índios, quilombolas e refugiados, e não em um processo específico.

— Escutamos falar em cotas raciais, indígenas e para população LGBT, mas não se trata de cotas. No nosso caso, é um edital temático. Já tinhamos a prática de fazer esse tipo de edital com quilombolas e indígenas e, devido a minha presença na Unilab como a primeira doutora professora travesti do país, me senti na obrigação de fazer um trabalho que incluísse essa população que é historicamente discriminada. Então passei dialogar internamente para que pudéssemos ter o mesmo tipo de edital para transgêneros e intersexuais. É algo inédito — explicou a docente Luma Nogueira de Andrade, doutora em educação.

O edital utiliza vagas que ficaram ociosas na seleção regular. Entre os cursos disponíveis estão Administração, Agronomia, Ciências Sociais, Relações Internacionais, Enfermagem e Matemática.A professora explica, no entanto, que enfrentou resistência interna para conseguir as vagas para a seleção.

— Depois de conseguir o aval para a existência da seleção, tivemos que lutar pelas vagas. Muitos colegiados ligados aos cursos não queriam abrir vagas para pessoas trans, fomos até eles para dialogar, já que alguns já tinham vagas para quilombolas e indígenas. Eu já temia que isso pudesse acontecer, mas a gente conseguiu rebater todas as críticas. Teve colegiado que não queria aceitar, porque poderia ter problema com o uso dos banheiros. Com diálogo pacífico conseguimos que a maioria aderisse — contou a professora.

A universidade pede que os candidatos encaminhem uma autodeclaração confirmada por alguma instituição que desenvolve trabalho com o público LGBT. Na inscrição, os candidatos deverão encaminhar um “memorial”, ou seja, um relato de suas histórias pessoais que falem sobre sua trajetória escolar, a vivência na sociedade e as expectativas em relação ao ingresso em uma universidade pública. Os candidatos também deverão falar sobre a importância de obter essa formação para sua vida.

O memorial será avaliado por uma banca e vale como uma das etapas da seleção. A segunda parte é composta por uma prova de redação. Na hora da prova, será sorteado um dos cinco temas previstos no edital e os candidatos terão que escrever um texto de 20 a 30 linhas. O documento traz as seguintes opções: Representatividade das pessoas trânsgêneras e intersexuais nas redes sociais; os desafios da família contemporânea; políticas de inclusão social no mercado de trabalho e na universidade; práticas de prevenção e combate ao bullying; identidade e empoderamento social.

Garantia de direitos

Para Andrade, a iniciativa é um marco na promoção de direitos para essa população:

— Esse vestibular representa a garantia de direitos fundamentais, do direito à educação. As pessoas transgênero e intersexuais necessitam de um formação para atuar no mercado formal e precisam acessar a universidade. Muito se critica essas pessoas, porque não estão no mercado, mas os críticos não se lembram que essa população não tem o apoio da família, não é aceita na escola, e é deixada de lado. Muitas vezes, não essas pessoas não têm outra opção senão o próprio corpo como forma de sobrevivência e partem para atividades profissinais marginalizadas.

O vestibular da Unilab foi recebido com festa pela comunidade trans. Secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Bruna Benevides explica que a iniciativa é fundamental para garantir igualdade na oferta de oportunidades e isso não significa uma tentativa de “higienização” dessa população, ou seja, um desejo de impedir que essas pessoas atuem, por exemplo, na prostituição.

— Estamos lutando pela igualdade de oprotunidade. Assim como há pessoas que estão na prostituição e querem continuar e respeitamos isso, há quem não queira. Quando abrimos um projeto como esse, nada mais é que criar oportunidade para quem nunca teve. É uma forma de equiparar a desigualdade no acesso e não de promover uma higienização. Muitas pessoas foram jogadas na prostituição compulsoriamente e essa medida é um resgate para aquelas que assim desejarem —  opinou Benevides.

País que mais mata transexuais

Segundo um relatório da ONG Transgender Europe, divulgado em novembro do ano passado, o Brasil é o país com maior taxa de assassinatos de transexuais em comparação com 72 países do planeta.

Nesse sentido, o benefício da inclusão dessas pessoas no sistema educacional não fica restrito a esse grupo. De acordo com a socióloga Marlise Matos, que coordena um núcleo de gênero na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os reflexos da inserção desse público nas instituições de ensino serão positivos para a comunidade no entorno da universidade. As vagas estão disponíveis nas cidades de Redenção e Acarapé, no Ceará, e em Baixa Fria, na Bahia.

— A taxa de morte de pessoas trans é altíssima no Brasil. A média de vida é trinta e poucos anos, essas pessoas não têm alternativa de trabalho, muitas são expulsas de casa e vão acabar na prostituição por completa falta de alternativa. Pessoas com identidades e sexualidade dissidentes trazem uma visão de mundo muito particular e podem trazer contribuições muito plurais. É uma convivência que pode ser muito salutar — analisou.

O GLOBO entrou em contato com o Ministério da Educação (MEC) para saber se existe outra iniciativa semelhante no país e questionou se o órgão aprova a medida, em nota, o MEC respondeu apenas que “as instituições de ensino superior têm autonomia para estabelecer seus próprios mecanismos de acesso”. A pasta disse ainda que a autonomia é garantida pela Constituição.

 

-+=
Sair da versão mobile