Utopia para meninos negros

FONTEPor Thiago Amparo, da Folha de S. Paulo
Arquivo Pessoal

São Gonçalo (RJ), João Pedro Matos Pinto, 14. João brincava com seus primos no jardim. Com que brincava João Pedro? Imaginemos algo que lhe dê alegria. Ali está João Pedro, brincando de videogame com seus primos. João Pedro corre para lá e para cá no jardim de sua casa. João Pedro se deita na grama e ri. João Pedro ri. João Pedro se pergunta quando voltará pra escola. João Pedro quer mesmo é saber o que teremos hoje para jantar. João Pedro vive. Quero imaginar que os 72 tiros contra casa de João Pedro não o definem.

Quero imaginar que os meninos negros mortos têm nome, sonhos e viviam. Vinte e quatro adolescentes foram baleados na Grande Rio; desses, 11 morreram, de acordo com o levantamento de abril do laboratório de dados de violência Fogo Cruzado. Em abril deste ano, aumentaram em 58% os óbitos em operações policiais no RJ em relação ao ano passado, segundo a Rede de Observatórios de Segurança. No país, aumentou o número de pessoas mortas pela polícia em 2019, enquanto assassinatos de policiais caíram pela metade, nos informa o G1 em abril deste ano.

Recuso-me a escrever outro obituário sobre mortes negras. Queria, ao menos enquanto durar este texto, honrar suas vidas imaginando outros passados possíveis. Vila Nova Jerusalém (RJ), Jenifer Cilene Gomes, 11. Jenifer espera sentada na porta de sua casa conversando com amigos, enquanto a sua mãe prepara feijoada para o jantar. Jenifer se senta à mesa, come o jantar e vê um desenho antes de dormir. Naquela noite, Jenifer não teria sido morta em tiroteio envolvendo policiais à paisana. Jenifer teria acordado no dia seguinte e se matriculado nas aulas de basquete com as quais sonhara.

Kauan Peixoto, 12, continuaria jogando futebol todas as tardes depois da escola. Kauã Rozário, 11, continuaria andando de bicicleta e cuidando de seu irmão caçula na volta da escola. “Obedece a mamãe, respeita a mamãe” não teriam sido as últimas frases de Kauã a seu irmão. Ágatha Félix, 8, continuaria as aulas de balé, inglês, xadrez e matemática que tanto adorava.

O que nos falta não são notas de pesar; nos falta justiça. “Justiça é como o amor se apresenta em público”, escreveu Cornel West. Se as mortes negras parecem distantes do mundo onde você, leitor deste jornal, vive, saiba que as instituições que negam justiça a estas mortes moram ao seu lado. São as corregedorias de polícia, os governos estaduais, as promotorias. O que nos falta não são notas de pesar; falta usar o privilégio que nos faz viver longe destas mortes para que elas, ao menos, recebam a justiça que merecem.

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Na peça “Buraquinhos ou o Vento É Inimigo do Picumã”, o dramaturgo Jhonny Salaberg reescreve a mesma cena repetidamente: a morte do personagem principal pela polícia quando foi comprar pão na padaria para a sua mãe no primeiro dia do ano. Primeiro negro a ser premiado na Mostra de Dramaturgia, seu texto é cortante. “Estanca o real para capturar a utopia”, diz. Ao reencenar a morte do personagem principal com uso de realismo fantástico, cheia de seres mágicos, Salaberg termina a peça com a maior das utopias: que ele não morra.

Escreve: “Eu pego a minha mochila, tomo o último gole de café e corro para a porta. Minha mãe seca as mãos no pano de prato que está em seus ombros, abre um largo sorriso e me abraça. Eu: Tchau, mãe!”.

 

Thiago Amparo
Advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.

 

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