Zumbi e dengue, por Sueli Carneiro

Foto: Marcus Steinmayer

O dia 20 de novembro, data da morte do herói negro Zumbi dos Palmares, é o Dia Nacional da Consciência Negra e feriado em vários municípios do país. O Ministério da Saúde resolveu homenagear a consciência negra este ano instituindo também nessa data o Dia D de Combate à Dengue.  Para alguns militantes negros tratou-se de um ”ato falho”, sintoma do desrespeito que o governo tem em relação à população negra e às datas comemorativas de seus heróis. Fátima Oliveira, articulista do jornal O Tempo, com sua fina mordacidade, definiu o fato como ”atestado de analfabetismo cívico”. Todas são explicações verdadeiras. Mas me pareceu um exercício interessante tentar desvendar se, por algum tipo de automatismo associativo, seria possível estabelecer alguma ligação entre Zumbi dos Palmares e o mosquito transmissor da dengue, ou do Dia Nacional da Consciência negra e dengue, que pudesse justificar a escolha da data da campanha.

por Sueli Carneiro

Em primeiro lugar, a origem do aedes aegypti, inseto transmissor da doença ao homem, é, como não poderia ser diferente, africana. Diz o sanitarista Eduardo de Azeredo Costa, no artigo ”100 anos depois”, que ”a história desse mosquito no Brasil provavelmente começa com os navios negreiros”.

A dengue é uma doença contagiosa que, em alguns casos, torna-se hemorrágica. Consciência negra e consciência racial podem também adquirir essas características, contagiarem e espraiarem-se de forma incontrolável, conduzindo a alguns situações sangrentas ou hemorrágicas, como já assistimos em outros países. Portanto, de uma perspectiva sanitária, deveria ser erradicada. O principal agente transmissor desse mal, no nosso caso, parecia erradicado há séculos pela expedição de Domingos Jorge Velho, em 1695, e, no entanto, ei-lo de volta, inoculando há décadas sonhos de liberdade, de afirmação étnica/racial e de realização de direitos de cidadania permanentemente negados ao seu povo.

A dengue é também descrita como uma doença fingida. Dizem os especialistas que, por não ter sintomas específicos, pode ser confundida com várias outras. Ela é, portanto, similar a outra doença que informa a consciência negra, o racismo brasileiro, que, igualmente fingido, esconde seus efeitos: a pobreza material, a falta de escolaridade, as mortes previníveis e evitáveis dos negros, tributando-os a um inusitado apartheid social e não racial, ou a um problema de classe e não de raça ou, ainda, reconhece-o, mas qualquer proposta para a sua solução diz-se que ela feriria ora o princípio da igualdade ou o da meritocracia.

O combate ao mosquito da dengue deve ser feito de duas maneiras: eliminando os mosquitos adultos e, principalmente, acabando com os criadouros de larvas. A matança de homens negros, sobretudo jovens, e os índices de morte materna e histerectomias entre as mulheres negras são expressivos da semelhança de profilaxia que vem sendo adotada para combater o avanço da consciência negra e a agenda de políticas públicas que ela contém, sobretudo no que diz respeito ao direito à vida.

Convenhamos que a escolha da data do Dia D de Combate à Dengue já não parece tão arbitrária. Há, como podemos notar, um conjunto de características que aproximam Zumbi, consciência negra e dengue. Mecanismos inconscientes foram capazes de apreendê-las e encontrar a lógica que permitia a sua associação, tanto quanto à natureza da doença como a forma de sua erradicação.

Superpor ao Dia Nacional da Consciência Negra um dia nacional de extermínio seja do que for, por meio de uma campanha de âmbito nacional apoiada no investimento maciço em diferentes mídias, tem múltiplas conseqüências, matando mais do que mosquitos da dengue. Significa, simbolicamente, estender uma mortalha sobre a figura de Zumbi dos Palmares e tentar devolvê-lo à invisibilidade a que a historiografia oficial o relegou e de cujas trevas ele foi resgatado pela resistência negra contemporânea.

Significa, também, estender uma mortalha sobre o vitalismo e a esperança que anima a luta dos negros no Brasil. É recordar-lhes que tanto quanto Zumbi está vivo neles, Domingos Jorge Velho também sobrevive naqueles que têm o poder de instituir e destituir datas e fatos históricos, promover ou negar as políticas públicas que reivindicamos, reconhecer, num momento, e ignorar noutro, a nossa luta. A impotência das instâncias institucionais criadas para combater as desigualdades raciais, para impedir o agravo promovido contra a consciência negra, é a medida do ”alcance” de nossas ”conquistas” junto ao Estado brasileiro e o nível de seu compromisso com o nosso povo.

Lição aprendida. A luta continua!

 

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