Em novembro de 2025, durante a COP30, em Belém do Pará (PA), as partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima aprovaram o “United Arab Emirates Just Transition Work Programme”, conhecido como JTWP. Esse programa orienta a transição global para economias de baixo carbono de forma equitativa e alinhada ao Acordo de Paris.
A decisão precisa considerar efeitos sociais amplos, integrar setores diversos da economia, envolver governos, trabalhadores, comunidades e sociedade civil, além de garantir participação plena de grupos historicamente excluídos. O texto destaca a centralidade dos direitos humanos, citando o direito a um meio ambiente limpo, o direito à saúde e o respeito aos povos indígenas, comunidades locais, migrantes, pessoas com deficiência, crianças, idosos, mulheres e afrodescendentes.
O documento também cria o caminho para a formalização de um Mecanismo de Transição Justa até 2026. Esse mecanismo deve apoiar cooperação, financiamento, capacitação e ações alinhadas à equidade social e climática.
O mecanismo de Transição Justa representa a principal conquista da COP30 para trabalhadores e comunidades em todo o mundo. É possível alcançar maior ambição em relação ao clima se colocarmos a justiça social no centro das atenções. Nenhuma decisão da COP jamais apresentou uma linguagem tão ambiciosa e abrangente sobre direitos e inclusão: direitos humanos; direitos trabalhistas; direitos dos povos indígenas e afrodescendentes; e fortes referências à igualdade de gênero, empoderamento feminino, educação, desenvolvimento da juventude e muito mais.
A aprovação do JTWP na COP30 representa um avanço importante ao reconhecer que a transição climática deve ser socialmente justa e politicamente inclusiva. A menção a afrodescendentes, a valorização da economia do cuidado sinalizam um movimento histórico de aproximação entre direitos humanos, justiça racial e de gênero.
Para o Brasil e para Geledés, esse é um momento estratégico. A transição justa pode fortalecer políticas públicas que enfrentem desigualdades profundas e que valorizem a vida de mulheres negras, comunidades periféricas e povos tradicionais. Porém, sem detalhamento, financiamento adequado e participação real das populações mais afetadas, o avanço corre o risco de permanecer simbólico.
A implementação será o verdadeiro teste. A transição pode se tornar uma oportunidade concreta de reparação e equidade, ou pode reforçar desigualdades. O desafio é transformar o texto aprovado em mudança real. O compromisso de Geledés é seguir acompanhando, analisando e pressionando para que a transição justa seja também antirracista, feminista e centrada na vida.
Por que essa decisão é relevante e o que muda?
1. A transição justa como pauta global de justiça social
Com o JTWP, a transição energética e econômica é reconhecida como parte essencial da agenda de direitos humanos. A decisão reforça que os impactos climáticos e os efeitos das respostas à crise não são distribuídos de forma igual. Comunidades vulnerabilizadas, povos indígenas, trabalhadores informais, mulheres e afrodescendentes, são afetados de forma desproporcional.
A inclusão explícita de afrodescendentes e de outros grupos vulnerabilizados representa um avanço histórico. Esse reconhecimento abre espaço para que políticas nacionais considerem injustiças históricas e desigualdades estruturais que marcam países do Sul Global.
2. Economia do cuidado e informalidade em foco
O texto inclui a economia do cuidado, trabalhadores informais, pessoas desempregadas e futuros trabalhadores entre os grupos que a transição deve considerar. Esse ponto é essencial. A economia do cuidado, composta em grande parte por mulheres afrodescendentes e periféricas, sustenta famílias, comunidades e setores inteiros da sociedade, mas permanece invisibilizada e desprotegida.
Ao mencionar essa economia, o JTWP abre a porta para que políticas climáticas reconheçam e valorizem trabalhos que historicamente ficaram fora dos cálculos econômicos e energéticos. Isso significa aproximar a agenda climática da agenda feminista e antirracista, e também das lutas por proteção social, renda, serviços públicos e bem-estar.
3. Um novo paradigma para cooperação internacional
Outro ponto importante é que o JTWP não impõe um modelo único de transição. A decisão afirma que cada país tem o direito de desenvolver caminhos próprios, considerando condições sociais, desigualdades históricas, prioridades de desenvolvimento e realidades econômicas.
Para países como o Brasil, isso abre espaço para incorporar a centralidade da justiça racial, do enfrentamento ao racismo ambiental e da valorização de povos afrodescendentes, indígenas e comunidades tradicionais.
O futuro mecanismo internacional de transição justa pode também criar novas oportunidades de financiamento, tecnologia e apoio técnico, indispensáveis para países que enfrentam desigualdade, pobreza, vulnerabilidade climática e falta de infraestrutura.
E o caminho para longe dos combustíveis fósseis?
A decisão sobre transição justa avança no reconhecimento de direitos e na inclusão de grupos historicamente invisibilizados, mas permanece limitada ao evitar qualquer menção clara ao fim dos combustíveis fósseis. Essa ausência é politicamente significativa, porque ignora o principal motor da crise climática e impede que a transição justa seja plenamente coerente com a ciência. Sem discutir a eliminação progressiva do petróleo, gás e carvão, corre-se o risco de construir um plano socialmente sensível, porém incapaz de enfrentar a causa estrutural do problema. Essa lacuna reflete a resistência de países e setores econômicos com forte dependência fóssil.
O olhar de Geledés e a importância da menção a afrodescendentes
Do ponto de vista de organizações comprometidas com a justiça racial e de gênero, como Geledés, a inclusão de afrodescendentes na decisão é um marco simbólico, histórico e político. Essa menção reconhece que a crise climática se cruza com séculos de desigualdade, racismo e exclusão. Também reconhece que processos de mitigação e adaptação podem produzir novas injustiças, caso não sejam guiados por critérios de equidade.
A menção à economia do cuidado reforça esse entendimento. O documento afirma a responsabilidade dos países em proteger e valorizar trabalhos essenciais para a sustentabilidade da vida, que recaem de forma desigual sobre mulheres negras. Assim, o JTWP aproxima a política climática da economia feminista, que há décadas reivindica dignidade, redistribuição e bem-estar como elementos centrais da economia.
Apesar desses avanços, há limites importantes. O texto não apresenta um plano de implementação detalhado, não estabelece salvaguardas robustas de direitos humanos e não define instrumentos concretos de financiamento internacional. O risco é que a transição justa fique restrita ao papel, caso não haja pressão política, participação social e mecanismos reais de monitoramento.
Contexto internacional e o momento decisivo
A ideia de transição justa surgiu nos anos 1980 em movimentos sindicais preocupados com o impacto de normas ambientais sobre postos de trabalho. Com o tempo, o conceito se ampliou e passou a integrar justiça social, ambiental e climática.
Nos últimos anos, sociedade civil, movimentos de mulheres negras, organizações de trabalhadores, juventudes e povos tradicionais pressionaram para que políticas climáticas considerassem desigualdades históricas e estruturais. A decisão da COP30 é fruto desse acúmulo político e intelectual.
Hoje, a transição justa está no centro do debate global porque a crise climática se combina com crises sociais e econômicas. A aprovação do JTWP mostra que a comunidade internacional reconhece que não basta descarbonizar. É necessário transformar economias sem aprofundar desigualdades e sem reproduzir violências estruturais.
Próximos passos na Conferência de Bonn
A Conferência de Bonn, que ocorre anualmente no meio do ano e prepara tecnicamente as negociações da COP, será o primeiro grande teste após a aprovação do Programa de Trabalho de Transição Justa. É nesse encontro que as Partes começam a transformar o texto político aprovado na COP30 em etapas concretas de implementação.
No caso específico da transição justa, Bonn deverá cumprir três funções principais.
Primeiro. Será o momento de estruturar o processo para a criação do Mecanismo de Transição Justa, cuja proposta final precisa ser apresentada na COP de 2026. Bonn permitirá que países, sociedade civil e grupos de especialistas discutam o escopo do mecanismo, seus potenciais instrumentos de financiamento, como funcionará a assistência técnica e quais setores poderão ser priorizados. Esse debate é decisivo porque definirá se o mecanismo terá força real ou se será apenas um espaço consultivo sem recursos.
Segundo. Bonn deve iniciar o debate sobre indicadores e diretrizes metodológicas. A decisão da COP30 menciona a necessidade de integrar direitos humanos, gênero, raça, trabalhadores informais, economia do cuidado e comunidades vulneráveis. Para que isso aconteça de forma consistente, será necessário estabelecer métricas e critérios mínimos. A conferência deve avançar em orientações sobre como os países podem reportar ações de transição justa e como o secretariado pode apoiar o monitoramento.
Terceiro. Bonn será fundamental para conectar o tema às demais agendas climáticas, especialmente NDCs, adaptação, financiamento e transição energética. Os países precisarão discutir como inserir a transição justa nas atualizações das NDCs e também como alinhar esse tema aos planos nacionais de adaptação. As conversas sobre financiamento climático em Bonn também serão estratégicas para garantir que o mecanismo previsto não dependa de empréstimos que aumentem a dívida dos países do Sul Global.
Além desses pontos, espera-se que a Conferência de Bonn aprofunde discussões sobre participação social. A decisão da COP30 afirma a importância da inclusão de mulheres, jovens, povos indígenas, comunidades locais e afrodescendentes. Bonn será uma oportunidade para que esses grupos pressionem por um desenho de governança que garanta assento e influência real, e não participação meramente simbólica.
A conferência, portanto, funcionará como o primeiro laboratório político do pós-COP30. O que for decidido, encaminhado ou bloqueado em Bonn influenciará diretamente o alcance do futuro Mecanismo de Transição Justa e a capacidade dos países de transformar compromissos em políticas públicas concretas.
Mariana Belmont é jornalista, pesquisadora, assessora de clima e racismo ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra e organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Instituto de Referência Negra Peregum e Oralituras, 2023).