Antônio Pitanga será tema de documentário dirigido por Beto Brant e por sua filha, Camila

 

Antônio Pitanga: Marido da deputada federal petista Benedita da Silva e pai dos atores Camila e Rocco Ana Branco.

Há pouco mais de um mês, Antônio Pitanga virou-se para a mulher, Benedita da Silva, passou o braço em torno de sua cintura, deu um cheiro no cangote e fez uma proposta simples como as boas marchinhas de carnaval: neste ano, seria ele pra lá, e ela pra cá, até quarta-feira:

— Eu sou do carnaval e ela é da Igreja. Eu sou o pecado e ela é a cura. No dia em que não existir mais o pecado, qual o sentido de tanta reza? — tenta explicar Pitanga, casado com Benedita há 25 anos. — Um completa o outro, casamento bom é assim.

Antônio Pitanga agora está enfiado entre as grades da concentração das escolas de samba do grupo de acesso, sexta-feira de carnaval, meia hora antes do desfile da Paraíso do Tuiuti. Ele veste uma roupa totalmente branca, com um colar de contas marrons e um chapéu de padrão étnico que um desavisado poderia traduzir simplesmente como “de oncinha”. É uma representação de Zumbi dos Palmares para a reedição do enredo “Kizomba, a festa da raça”, com que a Vila Isabel faturou o título em 1988. Em frente à concentração, o povo do edifício Balança Mas Não Cai grita seu nome e acena. Pitanga acabou de passar pelo Sem Rival, bloco que sai (mas não sai) em frente ao Teatro Rival, na Cinelândia, antes de desembocar na Sapucaí. Está feliz da vida. O carnaval estava apenas começando e — pior para Bené — vai até o próximo dia 23.

A partir de sexta que vem, começa o “Carnaval en San Luis”, na Argentina. Pitanga (com sua produtora, Ganga Zumba) é o organizador do evento, que já vai pra sua sexta edição. Ele é encarregado de juntar os componentes das escolas de samba cariocas e levá-los para a cidade argentina situada a 800 km de Buenos Aires, perto de Mendoza. Saindo de ônibus do Rio, são 55 horas de estrada. Mil e quinhentas pessoas, fora as bagagens, as fantasias, os instrumentos e um número incalculável de garrafas escondidas no porta-malas. A divisão dos componentes pelas escolas é democrática: o casal de mestre-sala e porta-bandeira de uma, a bateria de outra, o puxador de uma terceira, e por aí vai. Depois é alojar, alimentar e — ai, caramba — tomar conta dessa gente toda. Um trabalho do cão.

— No início, os presidentes das grandes escolas não queriam colaborar, diziam que ia dar merda — explica Pitanga, que começou a elaborar o projeto quando recebeu o sinal verde do prefeito da cidade portenha, um fã entusiasmado do carnaval carioca. — Depois eles perceberam que só têm a lucrar com o evento. A escola recebe um pagamento, que é distribuído aos componentes, e vê o nome levado para o exterior.

Do tango ao samba

O evento na Argentina — ao contrário da previsão inicial dos chefões das escolas — tem sido um sucesso. O povo da cidade adotou a ideia e, para este ano, as escolas do Rio receberão o auxílio de mil componentes treinados por lá. Eles desfilam por uma passarela que tenta reproduzir o Sambódromo carioca. Pitanga diz que a fase pré-desfile, em que são ministradas aulas de percussão, é o melhor momento do evento. Ele gosta de ver o pessoal acostumado ao ritmo do tango cair no samba. Gosta mais ainda de realizar algo em que poucos acreditavam.

— Eu nunca conjugo o verbo “não posso”. Eu posso qualquer coisa. Eu deixo o “não” para os outros usarem, se tiverem coragem — diz o ator, filho de lavadeira, que ficou chocado com a imagem do menino negro, nu, acorrentado no poste no Flamengo, no fim de janeiro. — Aquilo me deu medo, é a barbárie. Me lembrei de quando era garoto e em Salvador 90% dos negros levantavam no bonde para deixar o branco sentar. Eu nunca me levantei.

Antônio Pitanga deu as caras no cenário nacional com “Bahia de Todos os Santos”, dirigido por Trigueirinho Neto, em 1960. O filme o batizou no cinema e na identidade: Pitanga era o nome de seu personagem. Até aí, assinava como Antônio Sampaio, mesmo nome que consta também dos créditos de “Barravento”, primeiro longa de Glauber Rocha. Ali ele jogava capoeira, brincava na areia, fazia charme e se espremia entre as belezas de Helena Ignez e Luiza Maranhão. O filme o lançou direto para a fama e, de quebra, para o Rio de Janeiro.

No Rio, já era simplesmente Pitanga. Por aqui viu o Salgueiro mudar o rumo do carnaval com “Xica da Silva” em 1963, morou no Solar da Fossa, zanzou pela Mangueira (onde conheceu Cartola e Carlos Cachaça), se enfiou na passeata dos cem mil, se meteu no primeiro desfile da Banda de Ipanema, foi ver o Flamengo no Maracanã, cantou com Nara no Opinião e fez política no CPC da UNE. Namorou umas cem. Nas horas vagas, emendou um filme depois do outro. Fez “O pagador de promessas”, “Ganga Zumba”, “Os fuzis” e por aí foi. Atuou, no total, em 58 filmes. O último deles foi o belo “Receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, de Beto Brant. Ao seu lado, a filha Camila Pitanga.

— Meu pai é um filme sem roteiro, glauberiano, livre. Ele construiu uma narrativa mitológica própria, gosta de seduzir. Além de ser uns dez anos mais novo do que eu — ri a atriz, filha do casamento de Pitanga com a atriz Vera Manhães, e que ficou sob a guarda do pai, junto ao irmão Rocco, após a separação do casal. — Ele foi “pãe”, pai e mãe ao mesmo tempo. Cozinhava, passava roupa e ainda arrumava tempo para o trabalho de ator. Segurou uma barra pesada.

História, política e religião

A admiração da filha pelo pai resultou no projeto “Pitanga”, documentário que prepara em parceria com Beto Brant. O filme será centrado em sua carreira no cinema. O Pitanga artista inquieto, ativista, libertário, presente nos principais momentos do cinema brasileiro nos últimos 50 anos. O filme vai se juntar a outros dois tocados pela Ganga Zumba: um sobre a revolta dos malês, negros muçulmanos em Salvador no século XVI, e um roteiro sobre Dom Obá, o escravo que lutou na Guerra do Paraguai e se tornou confidente de D. Pedro II. Em qualquer das frentes, a mistura dos interesses do ator: história, política e religião.

— Em matéria de religião eu joguei nas onze. Quando era garoto, ia no terreiro de Mãe Menininha. Ela gostava muito de mim. Dizia “Entra, Antônio, vem, meu filho”. Eu entrava, comia a comida boa de lá, dormia um pouquinho e namorava à beça. Sempre teve nega bonita nos terreiros da Bahia.

São mais ou menos 2h30m da manhã e a Tuiuti se prepara para fazer a curva e entrar na avenida. Os diretores de harmonia tentam juntar o povo que irá na parte de cima do carro que representa o Quilombo de Palmares, o último da escola. A maior parte ali é formada por atores e atrizes que estiveram no desfile da Vila Isabel, 26 anos atrás. Na parte de trás do carro, uma mulher segura uma latinha de cerveja enquanto, impaciente, tenta encaminhar a turma pra cima aos gritos de “artistas no alto, artistas no alto”. Antes de subir, Pitanga dá uma sambadinha, mexe com os amigos e emperra o andamento da fila. A mulher então põe a latinha no chão, resmunga e, com as duas mãos, empurra o ator pela bunda.

— Ah, esse Pitanga, sempre dando trabalho — brinca Milton Gonçalves.

— Deixa ele, Milton — emenda Elisa Lucinda, rindo. — Ele é desse jeito mesmo, assim é que a gente gosta. Pitanga é feito de farra.

Antônio Pitanga abraça os dois e, com um sorriso sacana, tenta definir exatamente do que é feito:

— Sou uma fruta que dá em tudo que é canto. Às vezes é azeda, às vezes é doce. Mas é sempre boa de chupar, sabe como é?

Em junho, Antônio Pitanga vai fazer 75 anos de idade.

 

 

 

Fonte: O Globo

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