Aos 93, dona Ivone Lara ganha ‘sambabook’ em sua homenagem

Dona é a vovozinha. “Eu era mocinha, achava que me chamar de ‘dona’ estava me envelhecendo. Me chama só de Ivone Lara e pronto, tá acabado.”

Por Anna Virginia Balloussier Do Folha

Mas estava só começando para a “mocinha” de 56 anos –quando ganhou o pronome de tratamento que a imortalizou na música brasileira, tascado à frente de seu nome pelo apresentador Osvaldo Sargentelli, o “papa do ziriguidum”, segundo Chacrinha.

Hoje dona Ivone Lara, vovozinha com 93 anos e dois bisnetos, se dá o devido respeito. “Disseram para mim que eu não devia achar ruim porque era uma prova de consagração”, conta à Folha antes de estender a mão para pegar uma coxinha frita, fazendo os “balangandãs” nos pulsos e no pescoço tintilarem.

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Cantarolar Ivone é daqueles patrimônios tão brasileiros quanto pôr feijão no arroz. São dela versos como “Eu vim de lá pequenininho/ Alguém me avisou para pisar nesse chão devagarinho” (“Alguém me Avisou”) e “Acreditar, eu não/ Recomeçar, jamais” (“Acreditar”, com o “parceiro mediúnico” Delcio Carvalho).

Os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia estão entre os que regravaram suas composições para o “Sambabook Dona Ivone Lara” (Musickeria/Universal), projeto que engloba álbum duplo e DVD com os covers de luxo, mais fichário de partituras e uma biografia.

“Tem o seguinte, uns cobraram cachê. Fico agradecida, dou adeuzinho para todos. Cachê, não. Recebo, mas não dou a ninguém”, afirma.

(Os convidados foram remunerados “como em todo projeto patrocinado”, segundo a assessoria da Musickeria.)

Em 2011, Ivone reclamou à Folha que as gravadoras não lhe davam mais bola. Ficou “desgostosa e descrente” com o descaso, diz o jornalista Lucas Nobile, autor do livro do “Sambabook”. “Como explicar que uma artista de seu porte tenha ficado 12 anos, de 1985 a 1997, sem gravar um disco?”

Agora, é a indústria da folia que vira alvo: “Ih, virou negócio. Não ligo mais para Carnaval. Não saio porque tenho medo de ser assaltada.”

Antes do samba, a música erudita. Mulher de Heitor Villa-Lobos, a professora Lucília apreciava a voz de contralto da pupila –que foi regida pelo maestro aos 13, num coral.

Durante o samba, o manicômio. Ela se formou enfermeira em 1942 e trabalhou com a psiquiatra Nise da Silveira no hospício que abrigou o esquizofrênico Bispo do Rosário. Dona Paula, mãe de Paulinho da Viola, foi colega no ofício –do qual se aposentou em 1977, já sambista consagrada.

Chegou a fingir que estava doente para fazer show em Paris, de onde voltava com a mala abarrotada de perfumes como o “Paloma Picasso”.

É A MÃE

“Sonho Meu”, que Caetano define como “um negócio celestial”, não se restringiu às rodas de samba. Serviu de hino pró-anistia na ditadura, pelo trecho “vai buscar quem mora longe, sonho meu”. Na zona sul carioca, virou xaveco.

“Sonho Meu”, revela Ivone, se referia à sua mãe. E com ela no repertório de “Álibi” (1978), Maria Bethânia foi a primeira mulher a vender mais de um milhão de discos no Brasil.

Em 1977, convidada para atuar no filme “A Força de Xangô”, a bisneta de escravos achou que teria um papel menor, como o de costureira. Mas encarnou a poderosa Zulmira de Iansã, inconformada com o parceiro mulherengo, e rival de Elke Maravilha.

Ivone fez história como a primeira compositora das escolas de samba cariocas do primeiro escalão. Isso na época em que cabia à mulher preparar a feijoada no barracão. “Eu, não! Fora da minha casa não cozinhava para ninguém.”

AGORA É QUE É ELA

“Samba pra mim é meu sonho preferido”, diz a homenageada no “making of” do DVD do “Sambabook Dona Ivone Lara”. Não só dela: clássicos seus foram regravados por gerações da MPB, como Caetano, Zélia Duncan e Criolo.

Diretor artístico do projeto, Afonso Carvalho diz que a versão de “Nasci pra Sonhar e Cantar” da cantora de fado Carminho com o bandolinista Hamilton de Holanda, foi das que mais agradou a dona.

Exceto João Nogueira (1941-2000), o primeiro “sambabook”, Carvalho tem preferido honrar os vivos: Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Ivone e Jorge Aragão em 2016.

Cita Nelson Cavaquinho, que pedia em “Quando Eu Me Chamar Saudade” deferências em tempo real: “Me dê flores em vida”.

 

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