“Existiu um eldorado negro no Brasil. Existiu como um clarão que o sol da liberdade produziu. Refletiu. A luz da divindade o fogo santo de Olorum. Reviveu. A utopia um por todos e todos por um. Quilombo” em parceria com Waly Salomão canta Gilberto Gil na composição “Quilombo, o Eldorado Negro”.
Na luta contra a escravização e violência a corpos pretos e pardos, aos processos de sociabilidade e comunidade, pelo direito de existir e para além, o direito de viver.
Na resistência que perpassa desde meados de 1530, marcado na lei de 13 de maio de 1888 e ainda ecoando em 2023, dá antes Pindorama ao Brasil de hoje: afeto e ancestralidade, cura e ascensão, aquilombamento e mukambu são os fios condutores.
MUKAMBU
Comumente associado a esconderijo, refúgio e resistência, origina-se de línguas bantas como o quicongo e o quimbundo presentes na região subsaariana do continente africano.
Etimologicamente significa “pau de fieira”, um tipo de material utilizado para levantar os telhados de pequenas cabanas, como as choças, em ajuntamentos quilombolas. No Brasil, essas choças foram chamadas de mocambos, termo utilizado genericamente pelos portugueses ao se referir às comunidades erguidas nas matas brasileiras pela população negra insurgente e seus descendentes, enquanto fugitivos da escravatura, como descreve Décio Freitas no livro “Palmares, a Revolução dos Escravos, e hoje uma palavra ressignificada em sua origem e potência.
“Um sinônimo de Quilombo”, conclui Juliana Amorim, 38 anos, diretora de arte e companheira de Johnny Guilherme (Preto Invencível), 29 anos, com quem atua na marca Kilombo 93, um dos quilombos urbanos compilados nesta webreportagem.
Pela terra, pela memória, pela ancestralidade.
Os Quilombos são espaços de resistência. De início como construções de comunidades que se recusaram a aceitar a escravização no período colonial, e atualmente como luta por direito territorial de preservação de espaço ancestral, garantia de direitos e respeito à essa identidade e reconhecimento da sua contribuição na formação do país.
Como desdobramento dessa violência escravocrata, o racismo segue instaurado. Mas os movimentos negros são múltiplos e muitas vezes se conectam e se fortalecem. Essa luta de muitas mãos e mentes conquista lugar na Constituição Federal vigente, de 1988, artigo 63 com o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que reconhece em instância constitucional os territórios dessas comunidades, mesmo que não devidamente contemplada naquele período, a luta persiste pelas décadas ecoando até os dias atuais.
E no ecoar do caso de Maria Bernadete Pacífico, líder do quilombo Pitanga dos Palmares em Simões Filho, Bahia, e coordenadora da Conaq – Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos, que foi brutalmente assassinada a tiros durante a noite do dia 17 de agosto de 2023, sete anos após a execução de seu filho, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, conhecido como Binho do Quilombo, caso pelo qual a ialorixá buscava justiça. Como também ecoa nos outros 30 casos de lideranças quilombolas executadas nos últimos 10 anos.
As mortes das lideranças quilombolas impactam diretamente a comunidade e a preservação de suas terras, e na disputa das mesmas, pois são territórios negros ancestrais em ambiente rural que seguem uma lógica de olhar a fertilidade da terra por uma perspectiva que difere das ambições do agronegócio e da especulação fundiária que priorizam o lucro.
Neste contexto de perspectiva na construção e relação de cuidado pela terra que nutre, alimenta, protege, e em guarda os quilombos a preservam e resistem, conhecemos Michelle da Cruz, 39 anos, historiadora, de origem quilombola da Zona da Mata Mineira, no Quilombo Ribeirão Preto, onde construiu suas memórias de afeto no ato de feitura e partilha do alimento, trazendo esse legado ancestral pela comida, formação e projetos, como o Menina Sabores, sua produção de comida afetiva e quilombola através de receitas de família. Transita atualmente pelo ambiente urbano e rural, retornando com frequência a sua comunidade, onde vivenciou todo o processo de legitimação formal deste território, intercambiando conhecimentos e buscando formas de reconhecimento e melhorias para seus conterrâneos.
Da luta que vem do âmago das comunidades quilombolas aos que a fortalecem advindos de outras origens do povo preto, Patty Durães, 47 anos, paulista, neta de uma babalorixá carioca, pesquisadora de culturas alimentares da África e sua diáspora, como os quilombos no território brasileiro, traz consigo o enfoque da alimentação que nutre corpo e alma, partilhando e amplificando conhecimentos e legados nas raízes afro diaspóricas e se colocando disposta a polinizar gentilezas na busca de criar pontes para equalizar determinados cenários. Michelle e Patty, ambas entrelaçam-se por meio da memória e afeto que carregam os processos da alimentação, no plantar ao colher, no cuidar ao nutrir.
Segundo a Base de Informações Geográficas e Estatísticas (IBGE) sobre os Indígenas e Quilombolas, existiam 5.972 localidades quilombolas no Brasil em estimativa de 2019. E aponta que deste total menos de 7% são oficialmente reconhecidos.
Apesar do movimento quilombola ter uma organização própria em âmbito nacional desde 1995, somente em 2003, o Decreto Federal N°4.8878 regulamenta o processo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes quilombolas, sendo o INCRA o órgão responsável no Brasil.
Mas para além do aquilombamento geográfico, é necessário o fortalecimento do aquilombamento material e imaterial que se constrói e se sustenta nas relações de afeto e pertencimento, por meio da coletividade, resistência, conexão, escuta e identidade ao reverberar memórias, resgates, histórias para movimentar-se no presente, socialmente e politicamente.
compilado desenho em retrato dos personagens feito por théo
Desenho no formato de compilação de retratos dos personagens desta webreportagem: Fênix, Esther, Michelle, Patty, Johnny e Isidro – autoria por Théo de Souza.
Cada Orí, um quilombo.
Cada Okan, uma aldeia.
Potências que reverberam e amplificam, ecoando em união.
O ato de aquilombar-se é intrínseco à vivência na busca pelo reconhecimento daquilo que se é individualmente, e que potencializa-se no reconhecimento do que somos juntos. É a busca pela preservação e autopreservação da memória e ancestralidade, no âmbito físico, social e cultural que permeia o coletivo.
De origens quilombolas tradicionais ao aquilombamento urbano que se revela e emancipa em diversas frentes, seja as casas da Cultura Ballroom, a Casa de Angola, o Rolê de Pretas ou o Kilombo 93. Esther, Fênix, Isidro, Johnny, Michelle e Patty se aquilombam, unidos a seus pares construindo memórias e territórios de afeto.
Em meio a estes quilombos urbanos que se concretizam pelo afeto e pertencimento adentramos a cultura Ballroom, por meio de Fênix da Silva Leite, 34 anos, nordestine, negre e de descendência indígena, trans não-binárie, HIV positive, artista e ativista que reside em São Paulo, mas retoma constantemente o nordeste em seus processos e manifestações artísticas, como a Quilomball, uma Ball composta de oficinas, passarela e baile da Cultura Ballroom que teve uma edição pioneira no Quilombo Mimbó localizado na região rural do Piauí, onde também homenageou dona Idelzita, a primeira professora da comunidade.
“Porque a ballroom realmente é esse lugar onde eu consigo me encontrar enquanto uma pessoa negra mas também como uma pessoa trans não binária negra. Uma pessoa que vem do nordeste negra não binária. Então todas essas relações a ballroom ela consegue potencializar, sabe assim?! Pra que eu continue existindo. Acho que é isso.”
Fênix da Silva
Muitos são os movimentos e ‘corres’ de Fênix Negra por essas terras, entre a presença ativa e condecorada na cultura ballroom, compreende sua individualidade e sua coletividade através do ecoar de sua ancestralidade.
No ato de sonhar e protagonizar a própria história, unindo-se e aquilombando-se, na força da mulher preta que resiste a todas as violências impostas de raça, gênero, etarismo e mais. Transformando a solidão em união pelo bem-viver, pelo sorrir, abraçar e caminhar, assim conhecemos Esther Vieira, 28 anos, publicitária, produtora cultural e idealizadora do Rolê de Pretas, um espaço seguro de trocas, afetos, apoio e incentivo ao lazer e cultivo ao desenvolvimento das potencialidades de cada integrante e visando a ascensão de mulheres pretas nas diversas camadas do ser.
”{…} Eu vejo muito também um lugar de mulheres sonhadoras e mulheres com o objetivo em comum que é se encontrar… se aquilombar. E encontrar em um lugar de conexão, de conforto, de acolhimento. Então acho que para além de dores… a gente também se mantém ali, de uma necessidade de cura {…}”
No ato de potencializar-se individualmente e coletivamente, na busca pela ascensão de ocupar espaços que constantemente nos é negado, resiste Johnny Guilherme, 29 anos, regado por mestres como Racionais e Sueli Carneiro, denomina-se como Preto Invencível, é mentor, diretor criativo e idealizador, junto com sua companheira Juliana Amorim, 38 anos, da marca de vestuário Kilombo 93, onde descreve como:
“Tudo que um quilombo foi, só que no futuro, e forte o suficiente para NÃO ser extinto.”
Um quilombo urbano que “representa a resistência de manter as raízes africanas vivas”, assim se apresenta a marca, desde o uso de adinkras nas estampas, estudos e principalmente em seu logo desenvolvido como um guia por seus ancestrais, o adinkra fawohodie, que traz em seu significado os pilares da tríade da L-E-I do Kilombo 93: liberdade, emancipação e independência.
Esta ancestralidade também ecoa nas relações de aquilombamento de Johnny que são fortalecidas em meio à mulheres pretas, Juliana sua companheira que o impulsiona, a sua avó Maria Aparecida que abriu os caminhos, a sua mãe Rosana Guilherme que preparou e assentou estes caminhos para que hoje Johnny tenha uma base potente, amplificando a resistência pelo direito de existir, viver e ascender.
Nesta força mantenedora da ancestralidade que permeia o aquilombamento, Isidro Sanene, 35 anos, angolano de origem Mbalindo, imigrante em solo brasileiro, historiador, multiartista e idealizador do Coletivo Raízes São Paulo, Casa de Angola de São Paulo e Ngola Galeria, transita entre arte, educação e diplomacia, e expande nossa noção sobre o continente africano, buscando estreitar as relações entre Brasil e Angola, uma construção que iniciou em tempos longínquos – sendo o Brasil o primeiro país a reconhecer a independência angolana frente aos portugueses -, e que reverbera impactos até os dias de hoje.
Dentre os projetos fortificados por Isidro, a Casa de Angola se dá como um quilombo urbano, mas que não deixa de enaltecer as culturas tradicionais, as entrelaçando junto às africanidades contemporâneas por meio de manifestações distintas que vão além das capulanas, sem deixar de preservar a memória e a ancestralidade.
De olhar reluzente e orgulho na voz ao falar, compartilha sobre a retirada de vendas utópicas frente a signos de negritude que por vezes são romantizados e cristalizados na diáspora africana.
MUKAMBU, tradicional ou urbano, de espaços materiais ou imateriais, se fortalece nos processos subjetivos do aquilombamento pessoal que se dá nas relações de afetos coletivos.
“tudo que nós tem é nós
Tudo, tudo, absolutamente tudo que nós tem é
Tudo que nós tem é isso, uns ao outro
Tudo o que nós tem é uns ao outro, tudo”
– Principia, Canção do Emicida (part. Fabiana Cozza, Pastor Henrique Vieira e Pastoras do Rosário).
Assim como a palavra Orí é cantada por Nayra Lays sendo a “bússola do sagrado que nasce com cada indivíduo. Liberdade interior que aponta para os melhores caminhos.”. Assim é necessário ecoar o entendimento de que cada cabeça preta, parda e vermelha, negra e afro-indígena, é fonte de encontro, de caminho e de liberdade rumo a emancipação, ecoando Okan, a junção de consciência e coração.
A webreportagem “MUKAMBU” é uma produção de Elga Pereira, Francisco Soares, Geovanna Perez, Grazielle Salgado, Julia Oliveira, Mariana Mendes, Pietra Iglesias e Théo de Souza – 2ª turma do Curso de Multimídia de Geledés – Instituto da Mulher Negra.