Brasil – ‘Quase tudo trabalhador’

Fonte: Guia Global –

Este é mais um exemplo da criminalização dos movimentos sociais tão presente na história brasileira.

Ana Cristina Macedo tinha 17 anos. Nasceu em Crateús, no Ceará. Era mãe de um bebê de um ano de oito meses. Era evangélica e freqüentava a escola de samba Imperador do Ipiranga. Ana Cristina foi morta quando retornava do primeiro dia de aula no bairro Heliópolis, São Paulo, capital.

A favela de Heliópolis tem 125 mil habitantes, a maior de São Paulo, e fica encravada na fronteira entre São Paulo e São Caetano do Sul. É dividida entre a parte ‘nobre’, onde 62% das casas têm esgoto, e o núcleo ‘miserável’, onde nenhuma tem.

 

Heliópolis esteve no centro do noticiário e das manchetes nas últimas semanas. A morte da jovem Ana Cristina desencadeou fortes protestos da comunidade, que tiveram como resposta operações de guerra da polícia militar paulista. Noticiou-se que quem ‘orquestrava’ a revolta da comunidade eram traficantes, em troca de cestas básicas. Uma rede de televisão mostrou um bilhete de convocação da população, supostamente escrito por traficantes e bandidos. As cestas básicas ninguém nunca viu.

 

Marilene Pereira de Souza, sogra de Ana Cristina, disse: “Isso tudo é inverídico. Cansamos de apanhar da polícia e resolvemos protestar.” Segundo Geldaci Carvalho, moradora, “aqui é quase tudo trabalhador”. Para Cristiane Alves, “os policiais entram nas nossas casas, sem mandado, roubam nossas coisas, batem na gente, em busca dos bandidos”. Antonia Cleide Alves, presidente da Associação de Moradores de Heliópolis, afirma que “os protestos não foram organizados pelos traficantes. Foi a indignação que motivou o protesto. O que aconteceu aqui é que fomos invadidos pela violência que levou a vida da jovem Ana Cristina.”

 

Este é mais um exemplo da criminalização dos movimentos sociais tão presente na história brasileira. Como quase sempre, há violência só de um lado, do lado dos pobres, dos humilhados, dos que nunca tiveram nem voz nem vez. Do lado do poder, é preservação da ordem pública e da lei. Que ordem? A da desigualdade e da injustiça social? Que lei? A que serve aos poderosos, ao poder estabelecido e ao status quo?
Nestas horas, crescem o preconceito e a discriminação. ‘É pobre, é suspeito prévio.’ ‘É preto, só pode ser ladrão. Encosta ele na parede e revista.’ Como diz Antônia Cleide, “quem já tem o pé atrás com favela fica mais ressabiado ainda”.

Isso tudo está acontecendo em tempos de realização da 1ª Conferência de Segurança Pública (CONSEG). Os caminhos da democracia e da justiça social são longos, muitas vezes tortuosos. Num país em que foram assassinados milhões de índios, escravizados milhões de negros, e onde ainda hoje se assassinam sem-terras, escravizam-se trabalhadores e se matam milhares de jovens por ano, a maioria trabalhadores, negros e moradores de bairros pobres e favelas, as comemorações devem ser sempre feitas com cuidado. A consciência, a prática e o respeito diário aos direitos humanos de todos e todas, embora conhecidos e reais avanços, garantidos pelo poder público e pela mobilização social, precisam ainda ser conquistados definitivamente. Assim como a urgência de se acabar com todo e qualquer preconceito e discriminação.

 

Como disse dona Geldaci, aqui e no Brasil é quase tudo trabalhador, pagador de impostos, que corre atrás do pão de cada dia, do sustento da família, de cidadania, de respeito, de ser gente. Tem, pois, direito de protestar, organizada e desorganizadamente. Afinal, foi assim, no Brasil e no mundo, em todos os tempos, que pobres e trabalhadores garantiram alguns (poucos) direitos e dignidade: na revolta, no protesto, na mobilização, na organização, na consciência de que devem lutar juntos, de forma coletiva e solidária.

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