Em duas semanas, três casos explícitos de racismo na Libertadores envolveram torcedores argentinos do Boca Juniors, River Plate e Estudiantes em jogos no Brasil e na Argentina. Apesar da indignação dos envolvidos e da abertura de investigação por parte da Conmebol, essas situações mantêm-se no cotidiano do futebol sul-americano.
A postura de Leonardo Ponzo, torcedor do Boca Juniors que fez imitações de macaco para a torcida do Corinthians na noite da última terça-feira, em São Paulo, revela, inclusive, um traço cultural ainda arraigado na sociedade argentina, que, timidamente, segundo estudiosos, começa a ser discutido. Detido ainda no estádio, ele pagou fiança ontem e retornou a Buenos Aires. Antes de chegar ao seu país, apareceu numa publicação na rede social de um amigo, que ironizava sua detenção com a frase: “Nada por aqui!” com um emoji de macaco ao lado.
Na visão de boa parte dos argentinos, a atitude de Ponzo foi apenas uma brincadeira comum no futebol utilizada para provocar o adversário. Os torcedores do país muitas vezes são informados pelos clubes de como deve ser o comportamento em estádios brasileiros para evitar atos racistas, pois, no Brasil, racismo é crime.
— O ponto mais interessante e necessário é que os argentinos não se consideram racistas. Não tem uma reflexão profunda sobre o racismo. Só um punhado de intelectuais, de políticos progressistas e cientistas sociais colocam essa questão na mesa. Isso é central para entender a Argentina — diz o argentino José Garriga Zucal, doutor em Antropologia Social pela Universidade de Buenos Aires (UBA), que trabalha com o tema de violências nas torcidas de futebol do país.
Internamente, a xenofobia abraça o racismo, sem grandes distinções. No futebol local, esse é o principal ponto de discriminação. A torcida do Boca Juniors, por exemplo, sofre atos xenófobos por causa de sua origem operária vinculada à presença de imigrantes da fronteira, como paraguaios e bolivianos. Na concepção de parte dos rivais, sequer podem ser considerados argentinos.
— Esses gestos racistas não existem no futebol local. As formas de discriminação no futebol argentino são outras, com gênero, com a etnia e com as classes sociais, principalmente. Mas não necessariamente com a raça, pois não é um ponto de discussão para pensar o futebol argentino — afirma Garriga, acrescentando. — Aqui há algumas posições xenofóbicas muito fortes dessa representação da alteridade como invasiva, negativa e etc. Isso se coloca em discussão muito mais profunda relacionada à xenofobia e não necessariamente vinculada ao racismo. Deveria ser criada uma relação entre xenofobia e racismo, mas não é uma relação clara.
Num país com 2 milhões de negros —5% da população, segundo o Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (INADI) —, a identidade negra é algo ainda em construção. O senso comum de que “não há negros na Argentina” se consolidou ao longo das décadas dentro e fora, após a imigração europeia e o embranquecimento da população a partir do século XIX.
— Na Argentina, há uma rejeição ao latino-americano e ao afro. Isso faz parte do mito fundador argentino que nos diz que “os argentinos saíram dos barcos”, que somos todos italianos e espanhóis, em outras palavras. Isso torna invisível nossa herança afro e indígena e gera uma rejeição daqueles grupos que não se encaixam nessa visão do argentino europeu e branco. Essa rejeição pode ser em relação ao migrante externo, mas também ao migrante interno — explica o antropólogo Javier Bundio, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires (UBA) com tese “A construção do outro no futebol: Identidade e alteridade nos cantos das torcidas argentinas”.
Falta de debate
Sem essa identificação, a discussão emperra na ideia de que não há negros no país ou que negros são todos os não argentinos, como indígenas, pobres e demais latinos.
—Lá, o debate ainda está na busca de identificar quem são os negros. Aqui, no Brasil, estamos mais adiante no debate. Temos definido pretos e pardos como negros, e já discutimos o vocabulário considerado racista. Na Argentina, a palavra quilombo ganhou, ao longo do tempo, um sentido pejorativo — diz Marcelo Carvalho, presidente do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.
Lentamente, as posturas xenófobas e racistas da sociedade argentina vão sendo mal vistas e sofrendo mais pressão por parte de diversos atores sociais. Num primeiro momento, os clubes têm tido ações mais incisivas. O Boca Juniors prometeu punir seu associado e pediu desculpas ao Corinthians.
No caso do torcedor do River Plate, por exemplo, que jogou bananas em direção à torcida do Fortaleza, há duas semanas, no Monumental de Nuñez, o clube suspendeu o sócio por seis meses. Além disso, ele passará por um processo de conscientização sobre xenofobia no INADI, órgão federal que discute políticas públicas de inclusão e combate à discriminação.
Ontem, o Bragantino também fará denúncia formal à Conmebol após torcedores terem sido recebidos pelos torcedores locais com gestos e insultos racistas durante a partida contra o Estudiantes, em La Plata.
—A sociedade está um pouco mais reflexiva e crítica em relação a esses temas, mas não necessariamente as torcidas de futebol. Ainda são um reduto primitivo onde se pratica machismo, racismo, violênciae esse é um dos problemas do futebol argentino. Nunca foi feito um esforço real das organizações, da sociedade e dos governos para mudar isso — afirma o sociólogo argentino Marcos Novaro.
Punições leves
As punições aos clubes, nesses casos, têm sido financeiras. Porém, pouco afetam os clubes realmente. Casos os times envolvidos sejam punidos, o valor da multa representa 1% do que a equipe arrecadará nesta primeira fase da Libertadores.
O artigo 17 do Código Disciplinar das competições da Conmebol prevê que os clubes cujos torcedores apresentarem comportamentos que “insultem ou atentem contra a dignidade humana de outra pessoa ou grupo de pessoas, por motivos de cor de pele, raça, sexo, orientação sexual, etnia, idioma, credo e origem” serão punidos com multa de ao menos 30 mil dólares (cerca de 150 mil reais). Uma punição que pode ser aplicada diretamente nos valores de premiação. Já item 3 prevê sanções adicionais, dependendo da gravidade do acontecimento, seguindo o que rege o Código Disciplinar da Fifa.