Conheça o Coletivo Nega, que resgata a cultura negra a partir da arte

Pesquisadora e artista plástico falam da importância da arte em movimentos sociais, como o da Consciência Negra

Por Karin Barros Do ND Online

O dia 20 de novembro, data da morte do líder Zumbi dos Palmares (1695), foi escolhido para marcar reflexões sobre a inclusão do negro na sociedade. Porém, todo o mês acaba sendo de reflexão de grupos, coletivos e interessados em discutir o racismo, problema estrutural que continua inserido no país mesmo os negros sendo 53% da população brasileira conforme censo do IBGE, de 2014.

Para Roberta Lira, cantora, performer, pesquisadora e acadêmica de artes cênicas da UFSC, a invisibilidade da população negra é uma das violações mais graves aos direitos humanos. “Essa situação se arrasta diante da nossa história por mais de 400 anos e foi construída pela violência. Quando a história do Brasil é contada por historiadores e pesquisadores mais sérios, imparciais, protagonistas, africanos ou povos implicados nativos ou indígenas, a gente começa a ver que a história é bastante diferente daquela que aprendemos na escola. Muito de nós foi ocultado”, diz Roberta, que coordenou um projeto que se desdobrou em ensaio fotográfico e exposição “A Beleza de Nossos Corpos Negros”.

Roberta também foi fundadora da Kurima Bantu Mulheres Mudempodiro e do Coletivo Kurima – Estudantes Negras (os) da UFSC, e idealizadora e coordenadora do Intercâmbio Brasil/Perú de Mulheres Negras, selecionado em edital pela Association for Women’s Rights in Development (AWID/2016). Ela afirma que existe uma razão para existir o racismo científico desde o século 16, que prima pela classificação das raças, porém é derrubado por ser provado que os seres humanos não têm diferenças que os torne maiores ou melhores. “Existia por parte dos europeus um interesse de legitimar a colonização, de dominação, e que busca manter essa ideia de raça nas sociedades, e isso traz todo esse dano entre os povos”, coloca.

A cada 23 minutos, segundo a pesquisadora, morre um jovem negro no Brasil, fruto da invisibilidade criada pelo racismo estruturado. Para entender melhor o porquê disso, é preciso revisitar a história, conhecer as origens e a cultura negra, recomenda ela.

Em Florianópolis, há sete anos o Coletivo Nega (Negras Experimentações Grupo de Artes), da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), busca resgatar todas essas questões por meio da arte. Outro trabalho que merece destaque mesmo tendo poucos meses é a Feira Afro Artesanal, realizada às terças-feiras na Escadaria do Rosário, no Centro de Florianópolis, e que dá luz ao artesanato, à história, à música e à poesia negra.

Jovens, mas empoderadas

O Nega, além do significado das siglas, também remete à palavra “negra” e a “negação”. Por meio dele, jovens mulheres, sendo a mais velha com 24 e a mais nova com 22, dividem suas angústias e injúrias raciais sofridas desde a infância, em uma época que elas nem entendiam isso como um problema social.

O coletivo nasceu de um projeto de extensão criado pela professora e doutora Fátima Costa de Lima, buscando suprir a falta de representatividade para a população negra no campo do teatro, e influenciado pelo TEN (Teatro Experimental do Negro) fundado por Abdias do Nascimento há 68 anos, no Rio de Janeiro. Hoje, com apoio do projeto de extensão, mas independente de professores, o grupo trabalha com administração e criação coletiva das integrantes: Rita R.I, Fernanda Rachel, Thuanny Paes, Michele Mafra, Franco e Sarah Motta. Elas têm como objetivo valorizar as produções teatrais de artistas negros, com ênfase para as das mulheres negras.

Esse destaque surgiu da criação e modificações da performance criada há cinco anos denominada “Preta-à-Porter”, trabalho de repertório do grupo que parte de histórias e de conflitos enfrentados na vida cotidiana da população negra, histórias essas trazidas da vida pessoal de cada artista que participa ou já participou do coletivo. A obra expõe com maior destaque a vivência das mulheres negras, misturando, dança, canto, percussão, projeção e rap. “É um convite à experiência, sem apontar quem está sendo racista, mas a pessoa vê a situação e reflete naquele espaço por meio de um distanciamento e tem uma noção de quem é ela na sociedade”, coloca Thuanny. Desde sua criação, a performance foi apresentada diversas vezes em locais como Udesc, UFSC, Sesc Prainha, eventos e congressos acadêmicos.

Thuanny afirma que quando iniciaram essas apresentações era muito difícil fazer teatro e falar juntamente de questões negras. “Ninguém conversava sobre isso, agora existe algum diálogo. Nós mesmas criamos um curso que se chama ‘A disciplina que a gente não tem – Curso de Teatro Negro em cinco módulos’. Hoje já conseguimos abordar o assunto de forma diferenciada, falando do teatro brasileiro e negro”, explica.

Cantora, performer e pesquisadora Roberta Lira: pessoas negras precisam se ver representadas – Divulgação/ND

“Ações como essa, do nosso projeto ‘A beleza dos nossos corpos negros’ e muitos outros coletivos de arte do Brasil e do mundo, permitem que as pessoas negras se vejam e se reconheçam representadas de alguma maneira, e que pessoas brancas ou não negras as vejam de outra perspectiva, como protagonista, sem os estereótipos construídos no decorrer da primeira etapa (período colonial até os dias de hoje). Nos vendo como seres pensantes, que produzem, são inteligentes, sentem, tudo oposto ao que é ligado a ideia de raça”, aponta a pesquisadora Roberta Lira.

“A arte é o melhor mecanismo para discutir isso, por quê as pessoas conseguem se entregar de fato ao que está acontecendo”, coloca Franco. “Não é algo pessoal, apresentamos uma coisa estruturada, onde negros e brancos se entendem e entendem o problema que causam”, diz Rita.

Conhecimento que liberta

Para as meninas do coletivo, estar na universidade foi de extrema importância para entender, aprender e dar início a discussão sobre o racismo em suas vidas. “Antes disso, eu não tinha noção da minha posição na sociedade como mulher negra. Não são todas as pessoas negras que têm acesso à faculdade, então penso na nossa função quantas pessoas que tem esse privilégio e devemos levar adiante”, diz Franco, que está cursando artes cênicas na Udesc.

A integrante Michele, que cursa arquitetura na UFSC, lembra que na universidade as cotas começaram em 2008, mas que ninguém discutia isso dentro ou fora das escolas. “As pessoas às vezes simplesmente não querem falar isso, acham que está tudo bem, que a gente vive numa democracia racial, mas ela é falsa, é para privilegiar outros, e queremos que as pessoas reflitam e entendam que o racismo faz parte do dia a dia delas, em qualquer lugar”, afirma.

Artista Bruno Barbi tem os negros como principal tema de sua arte. Para ele, o movimento artístico é como um grito de guerra – Divulgação/ND

Bruno Barbi, artista plástico e um dos organizadores da Feira Afro Artesanal, em Florianópolis, diz que o espaço criado em julho deste ano oportuniza a artesãos uma fonte de renda extra, tirando muitas pessoas das sombras e abrindo portas. “A arte e a cultura sempre andaram ao lado dos movimentos sociais. O movimento artístico, neste caso, das discussões étnicas, vem como um grito de guerra, atraindo os olhares para o povo e a arte negra”, diz ele, que acredita na disseminação da cultura negra por meio da ocupação dos espaços.

A pesquisadora Roberta Lira afirma que eles têm enfrentado o racismo com a arte por ser uma maneira mais interessante de conseguir lidar com um assunto visto como tabu para muitos. “Ele precisa ser descontruído e para isso precisamos além de encarar, falar até esgotar, até que a gente consiga destituir essa palavra ‘raça’. Precisamos nos implicar, não só os negros, para garantir que os nossos direitos não sejam violados. Pois, apesar de termos uma Constituição que coloca que todas as pessoas são iguais, têm direitos, ela não acontece para nós [negros]. Precisamos parar de negar o racismo. A questão não é culpar, mas nos tornamos conscientes, responsáveis e atores de uma vida saudável”, finaliza Roberta.

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