Com mediação de Suzane Costa Lima, mesa inédita com autores indígenas encerrou a sétima edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira.
Por Danutta Rodrigues, do G1
Daniel Munduruku e Eliane Potiguara debatem na última mesa da Flica este ano (Foto: Paolo Paes/ Divulgação)
Estereótipos construídos ao longo de 517 anos que massacram e invisibilizam os povos indígenas. A última mesa da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), neste domingo (8), propôs uma reflexão a respeito dos equívocos históricos e culturais perpetuados dentro das escolas, rodas de conversas e todas as esferas políticas e sociais quando o assunto é o povo indígena.
Com os escritores Daniel Munduruku e Eliane Potiguara, o público foi convidado a se livrar de amarras do preconceito enraizado e que destrói milhares de culturas indígenas que resistem no Brasil: a proposta de descolonização do pensamento.
“Meu avô costumava dizer que o tempo que nós vivemos é o melhor tempo. Se o tempo atual não fosse bom, não se chamaria presente. Nós não somos nem do passado e muito menos do futuro, somos sempre presente”, disse o escritor Daniel Munduruku. Para ele, há 517 anos houve um desencontro entre povos, quando a cultura europeia tentou suprimir a cultura indígena e provocou uma cisão.
Público acompanha debate da Flica, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano (Foto: Paolo Paes /Divulgação)
“Para que o encontro seja verdadeiro, a gente precisa sair dele melhor. A gente precisa ter aprendido, tocado, sentido o outro para ser encontro verdadeiro. Quando há encontro nos tornamos melhor. A gente se torna mais humano na medida em que a gente consegue conviver com as diferenças”, explica. “Mas eu queria dizer para vocês que, apesar dessa minha aparência, eu não sou índio. Não existem índios no Brasil”, problematizou.
Entre questões sobre literatura, o papel da universidade, a perspectiva midiática, Eliane Potiguara tencionou a respeito da identidade indígena. “Hoje eu tenho mais de 50% das pessoas indígenas morando nas cidades, buscando desenvolvimento. Não se entende o que significa ter identidade indígena no país. Nós continuamos no mesmo patamar, nada caminhou. Eu sinto como uma onda de ódio. É um racismo contra nós. Esse agronegócio, os evangélicos que estão dominando com poço de racismo precisam abrir suas mentes. São nossos direitos humanos que não querem nos dar”, defende a escritora. “Por que querem calar sempre a nossa voz? Lutamos pelo nosso povo indígena e nossa ancestralidade”, completou.
Daniel Munduruku participou de última mesa da Flica neste domingo (Foto: Paolo Paes/ Divulgação)
Daniel Munduruku apresentou duas visões sobre o que se entende como índio. “A primeira, perspectiva romântica, que é tão legal ser índio. A imagem de proteção também reforça essa visão romantizada, como na literatura de José de Alencar. Mas tem uma outra que é tão ruim quanto, que é uma visão mais ideologizada. Índio é preguiçoso, selvagem, atrasado, sujo, traiçoeiro…Imediatamente essas duas imagens e duas visões elas moram dentro da gente mesmo que a gente não perceba”, conta. “A palavra índio não retrata a minha experiência. Essa imagem foi sempre uma negação. Apelido reforça em alguém uma ausência que ela tem. Por muito tempo as pessoas diziam que nascer índio era um defeito”, afirmou.
Segundo Munduruku, os indígenas têm sido atacados em várias frentes. Perseguição de lideranças que lutam pelas terras. “Nós somos culpados por ocupar espaços que devem servir ao progresso do Brasil. O que está acontecendo é uma luta que os indígenas já fazem há 517 anos, mas o brasileiro continua olhando pra gente como inimigos. Eles não percebem o serviço que o índio presta ao Brasil só pelo fato de estarem vivos”, disse. O escritor lembrou que apenas 9% do território que o indígena ocupa é a única parte verde, que dá ao Brasil a característica de ser um país verde.
A respeito da literatura, Eliane Potiguara destacou que é preciso expandir a consciência e se abrir para a produção indígena. “A minha mensagem está aí para vocês. Abram mais o coração e a alma para ouvir mais essa voz que foi tão sufocada em cinco séculos”, disse sob aplausos da plateia que lotou o último dia da festa literária. “Nós não temos um pensamento nacional, sobretudo na literatura. Se isso é comum na literatura como um todo, imagina na literatura de origem africana, indígena. Tem literatura no Brasil que é chamado de marginal. A literatura indígena ainda não entrou pelo cano, ela ainda não é canônica”, brincou Munduruku.
Assim como em relação ao racismo contra o povo negro, contemplar a complexidade da questão indígena segue uma direção que deve ultrapassar os séculos. “O Brasil tem que parar de olhar para outro canto, tem que olhar para si mesmo, o Brasil não gosta de si mesmo. Os povos indígenas estamos sobrevivendo, tentando nos manter vivos, muito sofrimento, choro, lamento, dificuldade. Me orgulho de pertencer e ser indígena porque tem a ver com resistência, que não tem a ver com a economia, tem a ver com nosso espírito, com nossa alma ancestral. Não somos antepassados, somos contemporâneos”, disse Munduruku.
A resistência por meio da luta feita com as palavras de vozes dos escritores indígenas confirma que este domingo (8) não foi dia de índio, e sim de Daniel Munduruku e Eliane Potiguara.
Eliane Potiguara também participou da última mesa da Flica (Foto: Paolo Paes/ Divulgação)