Comecei este nosso momento1, provocando vocês a lembrarem das origens afetivas da relação de cada um com as tecnologias, das nossas trajetórias, dos nossos vínculos com pessoas e situações. Vínculos e histórias que potencializaram, abriram janelas ou que se constituíram ou revelaram grandes obstáculos ou mesmo que pautaram questões fundamentais que marcam até hoje a nossa relação com as tecnologias.
Vou compartilhar com vocês algumas reflexões sobre a relação educação, direitos humanos e tecnologias. Para estimular nossa reflexão, nossos sentidos, vamos exibir durante a minha fala um conjunto de imagens. Estas imagens são de obras que integraram as Bienais “Emoção Artificial”, promovidas pelo Instituto Itaú Cultural sobre arte e tecnologias entre 1997 e 2012, e outras oriundas de escolas e de diferentes espaços de interação humana em sua relação com as tecnologias.
Desigualdades e epistemicídios
Para muitos de nós, a relação com as tecnologias – como muitas outras – foi ou é marcada pelo enfrentamento cotidiano de barreiras, sejam elas de classe social, de gênero, de raça, de etnia, de origem rural ou urbana, de origem regional, de existência de deficiências, entre muitas outras desigualdades tão presentes na realidade e na educação de nosso Brasil.
Nesse sentido, é sempre importante lembrar que o discurso tecnológico moderno está fundado na negação que as mulheres, que as pessoas negras e indígenas e muitos povos ao sul do Equador tenham sido produtores de culturas, de tecnologias, de ciências. O discurso moderno da tecnologia nasce profundamente assentado nos epistemicídios, como nos lembra Sueli Carneiro (2005), intelectual do movimento de mulheres negras. Está profundamente assentado no apagamento de histórias e contribuições, nos racismos, nos sexismos, na negação do outro como sujeito de conhecimentos. Algo também presente na história conhecida da criação da internet.
Racismos e sexismos que foram ao longo da história e continuam sendo denunciados e enfrentados de muitas formas no cotidiano das relações sociais (presenciais ou virtuais) ao campo das políticas públicas por meio da ação política de indivíduos, coletivos, movimentos sociais. Ações políticas que se caracterizam por resistências, reexistências e reinvenções críticas e criativas e que ganham novos contornos e possibilidades na relação com as tecnologias. Racismos, sexismos e desigualdades que também têm um poder incrível de se renovar, adquirindo novas e perversas caras, roupagens e discursos, que invadem e permeiam o cotidiano, as instituições e também a relação das pessoas com as tecnologias.
A espada de Ogun
O arquétipo de Ogun, orixá afro-brasileiro que representa a relação dos seres humanos com as tecnologias, lembra-nos que a construção tecnológica acontece em vários lugares do cotidiano da vida (da cozinha, das oficinas dos ferreiros, da combinação das ervas, aos laboratórios) e que os saltos tecnológicos da humanidade são resultado do trabalho coletivo, da soma de talentos muitas vezes anônimos e invisíveis de homens e mulheres.
Lembra-nos também que a responsabilidade diante da tecnologia e da “espada do ferreiro” passa por não ser sequestrado por certo sentimento de onipotência gerado pelo seu aparente poder afiado. Lembra-nos que é necessário sempre nos perguntar a serviço do que a tecnologia está e do que estamos. No mundo da natureza, Ogun é representado por planícies abertas, um campo de possibilidades, na qual sempre se enxerga o horizonte.
Um dos discursos sobre as tecnologias, presente em vários espaços, especialmente na educação, é o que coloca a tecnologia como território neutro, algo acima dos conflitos políticos, sociais e econômicos, acima das relações de poder, acima até dos interesses do mercado, algo que paira quase descontextualizado e autossuficiente. Perspectiva que se integra perfeitamente ao projeto de modernização conservadora do país, na perspectiva apontada por Renato Ortiz (2007).
Algo que é muitas vezes vendido como a resposta, como a solução que pouco exigiria mexer nas hierarquias, privilégios e relações de poder existentes. Quase que uma salvação mágica aos dramas de uma sociedade que se transforma, mas que se mantém vinculada a um modelo profundamente concentracionista, marcado pelo apartheid social, pela inclusão precária e subordinada, pela apropriação privada de bens públicos, violação de direitos humanos, consumismo exacerbado e destruição ambiental.
A questão que marca este curso é como avançar na relação com as tecnologias que permita mudar mais estruturalmente essa realidade, mexer com culturas e relações de poder reprodutoras de desigualdades e ampliar o potencial de transformação em prol da garantia de direitos, de justiça, de solidariedade e sustentabilidade ambiental. Tecnologia aqui pensada não como algo restrito à ideia de ferramenta, de instrumento, mas como espaço social inserido em contextos históricos, como assinala o professor Nelson Pretto, da Universidade Federal da Bahia, pesquisador que é uma referência fundamental para todos nós.
Nesse sentido, em uma perspectiva contra hegemônica, é fundamental reconhecer e visibilizar que muito, muito mesmo tem sido feito, inventado, recriado, misturado, costurado de forma criativa no que se refere às tecnologias por parte dos diversos sujeitos comprometidos com perspectivas transformadoras – do cotidiano às políticas públicas.
São indivíduos, coletivos, movimentos, universidades, gestores, educadores, redes, que mobilizam muita inteligência coletiva, produções colaborativas, democratização de conhecimentos e reconfiguram a ação política de diferentes, ampliadas e múltiplas formas em profunda relação com novas tecnologias. Nosso curso abordará grande parte desses movimentos, seus sujeitos, possibilidades, experiências, acúmulos e provocações.
Educação e Direitos Humanos
No que se refere à relação educação, direitos humanos e tecnologia, vou abordá-la a partir de duas dimensões: a educação como um direito humano em si e a educação em direitos humanos.
Em primeiro lugar, é importante falar de qual concepção de direitos humanos partimos. A noção contemporânea de Direitos humanos os assume como direitos que são de todos seres humanos simplesmente pelo fato de integrarem a humanidade. Direitos que independem do vínculo a um Estado nacional ou a um determinado grupo social. Direitos que têm na dignidade humana o seu fundamento ético.
Direitos que se constituem em processos de luta histórica que os seres humanos desenvolvem para acessar os bens materiais e imateriais necessários para a dignidade de todos e todas, como propõe o pesquisador Herrera Flores (2009). Direitos humanos que estão previstos nas legislações e normativas nacionais e internacionais, mas que não são dados, estando sempre em disputa.
Para se concretizarem, exigem que sejamos sujeitos de transformações das relações de poder do cotidiano ao plano internacional e uma ação ativa do Estado no sentido de coibir discriminações e promover políticas públicas coerentes, consistentes, planejadas, coordenadas, com financiamento adequado e participação.
Os direitos humanos são universais (para todos e todas), interdependentes (todos os direitos humanos estão relacionados entre si e nenhum tem mais importância que outro) e indivisíveis (não podem ser fracionados). São direitos exigíveis frente ao Estado em termos políticos e jurídicos, mas que também provocam a agência e pautam responsabilidades dos sujeitos no cotidiano da vida (pessoas, coletivos e instituições) em prol da construção de relações de poder mais igualitárias. Construção que supere os racismos, os sexismos, as homofobias e as muitas outras discriminações e violências que marcam a sociedade. Ou seja, a luta pelos direitos humanos passa estruturalmente, mas não se esgota na exigibilidade de direitos frente ao Estado.
O que significa pensar a educação com direito humano? Em primeiro lugar, que é um direito de todas as pessoas, independente se elas vivem em uma área quilombola, em uma prisão ou em um hospital, em uma região periférica de uma metrópole ou têm mães e pais que são imigrantes indocumentados ou que estejam desempregados etc. Todas e todos têm esse direito. Isso parece óbvio, mas não é na prática. Nossa política educacional ainda é uma educação organizada para que poucos tenham garantido o direito humano à educação de qualidade, com arranjos, procedimentos e culturas institucionais que contribuem não somente para manutenção, mas também para o acirramento de desigualdades.
Uma segunda consequência de pensar a educação como direito humano, é compreendê-la na relação com outros direitos humanos. O direito humano à educação provoca e exige para se concretizar políticas, arranjos, projetos, ações, programas que aprofundem uma abordagem integral e intersetorial dos desafios humanos da aprendizagem. A educação isolada perde força de transformação. Exige pensa-la na articulação das políticas de saúde, assistência social, tecnologia, cultura, comunicação, economia, de emprego etc.
Uma terceira consequência de pensar a educação como direito humano é o de entendê-la como um direito de síntese, ou seja, por meio dele pode-se alavancar a garantia de outros direitos. Nesse sentido, a relação da educação com a cultura, com as tecnologias e com a comunicação ampliam ainda mais o potencial dessa “alavancagem” ao democratizar informações, estimular a produção de conhecimentos, ampliar o leque de possibilidades de “ser, estar sentir e transformar o mundo” e, sobretudo, contribuir para as mudanças culturais profundas. E aqui pensamos a educação de forma ampla, ao longo da vida, em espaços formais, informais e não formais.
Educação, direitos humanos e tecnologia: questões em jogo
Partindo desses pressupostos, gostaria agora de abordar mais especificamente algumas das questões em jogo da relação educação, direitos humanos e tecnologia.
Tratando do direito humano à educação de qualidade no Brasil e, especificamente, da chamada educação formal, entendo que é necessário superarmos uma determinada perspectiva do debate que compreende a escola como algo ultrapassado e questiona a necessidade de investimento em políticas de valorização das/dos profissionais de educação, entendidos muitas vezes como profissionais “obsoletos”.
Muitas vezes, utiliza-se o discurso do investimento tecnológico em educação como negação, desqualificação ou contraposição à necessidade urgente de valorização da condição docente no país, alimentado falsos e equivocados dualismos. Estes profissionais, cerca de 80% constituídos por mulheres, vivem muitas vezes uma realidade marcada por condições precárias de trabalho, salários baixos e limitado acesso a produções culturais.
É fato que não há nenhum país do mundo que conseguiu revolucionar sua educação sem um investimento mais estrutural na valorização docente e na garantia de condições de atendimento, que no caso do Brasil, é traduzida no chamado Custo Aluno Qualidade, referência de luta para diversos movimentos sociais de educação em prol de um financiamento que responda aos padrões de qualidade previstos na legislação educacional brasileira.
Nesse sentido, entendemos que as/os profissionais de educação podem e devem exercer um papel fundamental na construção de uma escola democrática, na qual a relação com as tecnologias seja potencializada a serviço da promoção de sujeitos de direito de aprendizagens significativas, colaborativas e contextualizadas.
A escola brasileira, com todos os seus muitos problemas, limites, acúmulos, diversidades e potencialidades, seus autoritarismos e suas invenções, ousadias e descobertas, precisa ser fortalecida e reinventada, como tão bem defendeu Paulo Freire. Para isso não há uma solução mágica, mas sim a composição de várias ações e políticas que a potencializem e permitam fortalece-la por inteiro, envolvendo seus sujeitos e não os excluindo.
As tecnologias provocam a educação a se repensar e podem sim provocar a quebra dos muitos muros das escolas, ampliar o leque de possibilidades de trajetos formativos dos sujeitos, estimular um papel mais ativo e autoral de educadores e estudantes, valorizando produções colaborativas, estimulando sujeitos coletivos e produções contextualizadas nas realidades locais. Contribuindo para fortalecer uma perspectiva política de currículo mais sintonizada com os interesses, necessidades e demandas das pessoas, coletivos e comunidades concretas.
Mas para que essa perspectiva avance na área educacional, a partir de abordagem comprometida com a garantia do direito humano à educação de qualidade, é necessário que esse debate reconheça as tensões presentes nas políticas educacionais, sobretudo no que se refere à relação público-privado e à disputa entre noções de educação, que ora é assumida como mercadoria, ora como inclusão precária e subordinada no mundo da aprendizagem e da vida, ora como direito.
Com relação à educação em direitos humanos, aquela que se destina explicitamente a promover uma cultura de direitos humanos, por meio da educação formal, não formal e informal, como tão explicitado nas Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos (2012), as tecnologias podem ampliar seu potencial, sobretudo, de fortalecer sujeitos e uma sociedade civil plural, que reinventa formas de promover valores e atitudes, fazer política e disputar espaços públicos e privados. Possibilidades e provocações que ganharam concretude nas jornadas de junho de 2013, nos “rolezinhos” e em tantas outras manifestações no Brasil e no mundo. Mudanças que mobilizam não somente disputas argumentativas, informações, cognição, mas envolva uma educação emocional que valorize a alteridade, a solidariedade, o respeito, promovendo novos “encontros” e diálogos e, sobretudo, o reconhecimento de Outras e Outros como sujeitos de dignidade.
Com certeza, as tecnologias podem contribuir ainda mais para que a educação possa superar uma cultura ainda tão extremamente complacente para com as desigualdades, ampliando a intolerância da sociedade brasileira para com as desigualdades, colocando em xeque a naturalização das hierarquias que marca profundamente o país.
Concluo minha fala, destacando a importância de políticas públicas que ampliem o acesso a tecnologias digitais, em especial, a importância dos Softwares Livres, do Plano Nacional de Banda Larga e dos Recursos Educacionais Abertos, como defendido por vários movimentos, entre eles, a Rede de Recursos Educacionais Abertos (2012), o Movimento Wikimedia e tantos outros. Sabemos que o acesso a tecnologias, como já dito, é marcado profundamente pelas desigualdades, assim como as oportunidades de vivenciar seu potencial de forma mais plena e cidadã.
Nesse sentido, é fundamental que tenhamos em mente algumas dimensões da relação educação, direitos humanos e tecnologias como referenciais para o caminho. Referenciais que possam ser afirmados como direitos humanos associados às possibilidades abertas pelas tecnologias na relação com a educação e a produção de conhecimentos.
São eles, o direito à experimentação para todas e todos e não somente para alguns; o direito à apropriação do conhecimento; o direito à interação e à construção colaborativa; o direito de ser autor e autora de conhecimentos; o direito ao ritmo de aprendizagem e de construir percursos formativos individuais e coletivos; o direito de valorização dos conhecimentos e dos contextos locais e o direito de ser ouvido, de se organizar coletivamente e de participar de processos de interesse público de diferentes formas: do cotidiano da vida à luta por políticas públicas.
Estas foram algumas provocações, deste lugar de Ação Educativa. Estamos muito felizes com a oportunidade de trocar, construir e aprender com vocês em nosso curso de Educação, Direitos humanos e Tecnologias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese de doutoramento; São Paulo, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2005.
HERRERA FLORES, Joaquim. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis. Fundação Borteuix, 2009.
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PRETTO, Nelson; PINTO, Cláudio da Costa. Tecnologias e novas educações. Revista Brasileira de Educação. V. 11, n. 31, jan/abr. 2006. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), Rio de Janeiro, 2006.
PRETTO, Nelson. O desafio da educação na era digital. Revista Portuguesa de Educação, 2011, 24(1), Universidade do Minho, Portugal.
SANTANA, Bianca; ROSSINI, Carolina; PRETTO, Nelson (orgs). Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas. Salvador, Edufba; São Paulo, Casa da Cultura Digital, 2012.
1 Exposição realizada na aula de abertura do Curso Educação, Direitos Humanos e Tecnologias (10/4/2014), promovido por Ação Educativa e Fundação Wikimedia, entre abril e junho de 2014.
2 Denise Carreira é coordenadora da Área de Educação e da Unidade Diversidade, Raça e Participação da Ação Educativa. Feminista, é mestre e doutoranda em educação pela Universidade de São Paulo. Foi Coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e Relatora Nacional de Educação pela Plataforma DHESCA-Brasil.
Fonte: Ação Educativa