“O problema do negro, no Brasil, nunca mereceu um tratamento devido. E, em vez disso, presenciamos silêncios, inclusive por parte de profissionais da imprensa que deveriam ter o papel de informar formando.”
“Quem é ateu e viu milagres como eu/Sabe que os deuses sem Deus/Não cessam de brotar, nem cansam de esperar/E o coração que é soberano e que é senhor/Não cabe na escravidão, não cabe no seu não/Não cabe em si de tanto sim/É pura dança e sexo e glória, e paira para além da história…”, essa belíssima e amarga canção do velho e bom Caetano Veloso sintetiza bem a onda burra de racismo escancarado com que nos deparamos na Bahia e no Brasil, de uma maneira geral, e que é fortemente reforçada pela mídia, tanto impressa como televisiva.
Mas, no último dia 24 de fevereiro, me deparei com uma matéria de capa no jornal A Tarde – jornal abertamente preconceituoso, separatista, demagogo e burocrático –, assinada pela jornalista Maíra Azevedo, retratando justamente essa lamentável situação do início desse post, que cotidianamente as camadas populares em Salvador (BA) vivenciam, mas que, infelizmente, os meios de comunicação dessa província preferem omitir – e o A Tarde também nunca foi de expor essas mazelas em suas páginas, principalmente no período de Carnaval.
Segundo a matéria: “Em apenas seis dias, nas festas momescas, 288 denuncias de discriminação racial foram registradas pelos sete postos do Observatório da Secretária Municipal da Reparação, instalados nos três circuitos oficiais do Carnaval deste ano, em Salvador. Isto significa uma média diária de quase 50 vítimas de racismo, que representa um aumento de 21,5% no número de caos computados na folia do ano passado (237). O desrespeito praticado contra esses cidadãos é tão violento que nenhum dos denunciantes deste ano procurados pela reportagem se dispôs a ser fotografado”.
A matéria enfatiza que “a cada dia da maior festa de rua do planeta, aproximadamente 50 pessoas foram vítimas de discriminação em algum momento da folia”. Além desses dados sobre o racismo, o Observatório da Discriminação Racial, Violência contra a Mulher e LGBT, implantado nos três circuitos oficiais da folia – Dodô, Osmar e Batatinha (Barra, Campo Grande e Pelourinho, respectivamente) registrou ainda as denúncias de violência contra a mulher (188) e de homofobia (18 casos) – mais coisas podres da Bahia aqui!
Para o escritor e professor de História Leandro de Assis Malungu: “Antigamente, uma corda separava brancos e negros no Carnaval de Salvador, além dos moradores de bairros populares que não conseguiam comprar mortalhas dos blocos considerados mais importantes. Hoje, o bloco que negar um folião pelos mesmos motivos vai sofrer um processo pesado e uma retaliação popular tremenda. Mas, com a melhora na economia brasileira, a quantidade de negros e moradores de bairros populares que têm condições de comprar um abadá aumentou. Agora a nova forma de separação entre brancos e negros é o camarote, que se espalham pelos circuitos do Carnaval, alguns somente para convidados, a maioria brancos e quando tem negro é artista ou jogador de futebol.”
Mas numa sociedade que se diz democrática, deveríamos fomentar um pensamento mais crítico que inclua uma autocrítica constante, mas isso está muito longe de acontecer. A visibilidade dos negros como cidadãos é um exercício diário, ela é provocada por uma espelhação constante, como defende o texto da Maíra, no A Tarde. Por isso, é muito importante que o negro reflita, para poder conscientizar-se do seu direito de cidadania. E não passar mais 512 anos à mercê dos ditames do preconceito e da pobreza.
E com relação ao racismo que infesta a nossa sociedade hipócrita e sectarista e, ainda, segundo a matéria, o número de denuncias crescem a cada ano, contudo, segundo o coordenador nacional da União de Negros pela Igualdade (Unegro), Jerônimo Júnior, o aumento das denuncias é reflexo da conscientização da população: “O Carnaval é reflexo da sociedade. Por isso consideramos que não houve aumento, mas, sim, a percepção de uma sociedade existente, pois, a formação de sociedade é racista” – confira aqui.
A matéria também deu atenção especial a outro caso ridículo, com o estudante universitário e negro Marcos Davi Silva que foi barrado na porta do elevador do prédio onde mora no bairro da Pituba. Segundo Marcos, quando retornava da academia, foi impedido por duas vizinhas do Edifício São Marcos, na Rua Emílio Odebrecht, de entrar no elevador de serviço, quando pretendia se dirigir ao apartamento onde reside há pelo menos dez anos. E, ao ser empurrado, disse ter ouvido de uma das mulheres: “O elevador está cheio para você, sua coisa”, relatou o estudante, que disse também ter sido chamado de “cachorro” e ainda: “Lugar de pessoas como você é a cadeia”. Só espero que tanto o Carvalho, quanto o Marcos Davi, processem esses idiotas, pois esses crimes de racismo que são inafiançáveis e podem ser punidos com penas de detenção, deveriam servir de exemplos.
Uma coisa que eu acho das mais violentas, que vilipendiam a condição do outro, normalmente pobre e preto, é que, das pessoas acusadas de criminosas e bandidas, culpadas ou não, que figuram diariamente nas páginas policias dos dois jornais de maior relevância de Salvador, pouquíssimas são aquelas que não têm a sua fotografia publicada. Não que prefiram, mas não lhes é dada à opção, ou seja, em momento algum o profissional da impressa que as usa como fontes, lhes inteira dos seus direitos de recusa ou aceitação a ser fotografado.
Além do mais, na contemporaneidade, onde qualquer forma de sociabilidade é necessariamente midiatizada, o que prescindir, ou não tiver o aval desse poder, será invisível. Por conta disso, é escandaloso quando se nota que existe uma grande fração social que está à margem desse campo, e que quando aproxima do mesmo são em situações das mais repelentes possíveis, ou seja, o melhor seria não estar ali.
Nós perguntamos então, até que ponto se é ético omitindo, e muitas vezes, sonegando direitos a quem cabe usufruí-los? Os negros não têm direitos iguais como os brancos? Deveria se contar com o bom senso jornalístico? Isto porque o grande contingente de indivíduos que aparecem nas páginas policiais e programas ridículos que espirram sangue não detém um nível de escolaridade capaz que lhes permitiria uma maior capacidade de discernimento entre os seus direitos e deveres? Seria uma prática racista por parte do repórter fotográfico, por serem essas pessoas na maior parte negra? Abram as páginas dos jornais – estarão estampadas lá todos os dias: pretos e pobres em suas páginas policiais!
Pela decisão, Amorim terá ainda que publicar um texto no qual, dentre outras coisas, afirma que reconhece Heraldo como um jornalista de méritos e ético; que nunca foi empregado de Gilmar Mendes; que nunca foi submisso a quaisquer autoridade e que não faz bico na Globo, mas que é empregado de destaque da emissora e que a expressão “negro de alma branca” teria dito num momento de infelicidade, do qual se retrata, e não quis ofender a moral do outro ou atingir a conotação de racismo. “É um absurdo fazer uma análise do meu trabalho a partir de questões raciais. Meu engajamento é com a notícia. Não sou jornalista negro. Sou negro e jornalista”, disse Heraldo.
Mas o problema do negro, no Brasil, nunca mereceu o tratamento devido. E, em vez disso, presenciamos silêncios em relação a isso, para não dizer pouco caso, inclusive por parte de profissionais da imprensa que deveriam ter o papel de informar formando. “É no xaréu que brilha a prata luz do céu/E o povo negro entendeu que o grande vencedor/Se ergue além da dor/Tudo chegou sobrevivente num navio/Quem descobriu o Brasil?/Foi o negro que viu a crueldade bem de frente/E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente”, já cantou Caetano. E de quando em vez, e de vez em quando, são veiculados poucos casos de racismo e alguns dados estatísticos, onde só os números são vistos, que mostram as condições de precária e medíocre vida da maioria da população negra do Brasil. E vale dizer que o réu Paulo Henrique Amorim ainda insistiu na tese de que “negro de alma branca” é, na verdade, um elogio…
Fonte: Literatura Clandestina