Em debate promovido por Ipea, Geledés discute estratégias para efetivar propostas concretas de adaptação para a COP30

14/10/25
Kátia Mello - [email protected]
Em um país marcado por profundas desigualdades territoriais, raciais e de gênero, o evento teve como foco a implementação efetiva das políticas climáticas

No mês que antecede a COP30, o Brasil vive um momento decisivo na construção de sua agenda climática. Nos dias 9 e 10 de outubro, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) promoveu em Brasília encontro com especialistas nacionais e internacionais, representantes do governo e da sociedade civil no seminário “Do Conhecimento à Ação: Diálogo Estratégico para a COP30”. A reunião, que contou com a participação de Geledés-Instituto da Mulher Negra, procurou transformar o vasto acervo científico e técnico sobre mudanças climáticas em propostas concretas para orientar políticas públicas de adaptação, financiamento e justiça climática.

Mais do que um debate preparatório, o evento teve como foco uma transição necessária: da formulação teórica à implementação efetiva das políticas climáticas. Em um contexto de liderança brasileira em fóruns como o G20 e o BRICS, o seminário destacou a urgência de alinhar ciência, Estado e sociedade na construção de uma resposta conjunta à crise climática — especialmente em um país marcado por profundas desigualdades territoriais, raciais e de gênero.

Temas como o papel dos bancos de desenvolvimento no financiamento climático, as capacidades estatais para implementação de políticas públicas, o uso de inteligência artificial no monitoramento ambiental e a construção de indicadores de adaptação entraram no radar do seminário.

Foi justamente nesse cenário que a fala de Thaynah Gutierrez, assessora internacional de Clima e Racismo Ambiental do Geledés – Instituto da Mulher Negra, ganhou centralidade. Thaynah propôs um deslocamento fundamental na compreensão da adaptação climática: ela não pode ser apenas técnica, precisa ser também antirracista, participativa e territorializada. Para a assessora de Geledés, desenvolver indicadores de resiliência climática eficazes exige reconhecer que gênero, raça e renda são dimensões estruturantes da vulnerabilidade.

“Precisamos conseguir tornar a desagregação de dados algo obrigatório para o conjunto dos nossos indicadores, e ao mesmo tempo, não ignorar as especificidades regionais e territoriais que temos aqui, que nos agrupam por biomas, mas também por características culturais, que devem entrar na conta dos indicadores para que esses possam nos indicar a realidade dos desafios para adaptação”, disse ela.

E continuou: “Os indicadores de adaptação precisam se basear em dados desagregados, que revelem as desigualdades reais entre territórios e populações”. Segundo Thaynah, o desafio não se encontra em apenas medir o impacto das mudanças climáticas, mas na compreensão de como essas desigualdades históricas amplificam esses efeitos. “Nos territórios mais vulnerabilizados – periferias, favelas, territórios indígenas e quilombolas e nas regiões litorâneas – precisaremos levar em consideração as desigualdades estruturais pré-existentes a serem reparadas para que as políticas de adaptação tenham efetividade.”

Thaynah Gutierrez, assessora internacional de Clima e Racismo Ambiental de Geledés

Thaynah ressaltou que o trabalho do Geledés e da Rede por Adaptação Antirracista, da qual faz parte, mostra que a construção de indicadores deve integrar saberes locais e metodologias participativas. Ela citou como exemplo o projeto “Cocozap”, criado pelo Data Labe no Complexo da Maré (RJ), que desafiou a narrativa oficial de cobertura total de saneamento no território. Durante quatro anos, jovens moradores coletaram e sistematizaram dados via WhatsApp, revelando as lacunas reais na qualidade e acesso ao saneamento básico. O resultado foi a revisão do Plano Municipal de Saneamento e a consolidação de uma metodologia replicável, que vem inspirando outras iniciativas em diferentes regiões do país.

“Daquela experiência, surgiram inúmeras outras experiências de produção cidadã de dados na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, no Pará, em Recife e em tantos outros estados”, contou. Para ela, os indicadores nesse contexto da adaptação climática não podem ser impostos de cima para baixo. “É crucial adotar uma metodologia participativa — como rodas de conversa, oficinas e pesquisa-ação — para que a própria comunidade decida o que é relevante medir. Ao discutir o saneamento, por exemplo, o grupo marginalizado pode definir indicadores que vão além das métricas de infraestrutura (como a porcentagem de domicílios ligados à rede) e incluir indicadores de impacto baseados em saberes locais, como o número de dias com mau cheiro insuportável ou a frequência de doenças de veiculação hídrica após as chuvas. Esses indicadores qualitativos e contextuais capturam a complexidade da realidade”, afirmou.

Outro exemplo mencionado pela assessora internacional de Clima de Geledés foi o Projeto Cabaça, localizado em São Paulo e liderado pela Ialorixá Adriana de Nanã. A iniciativa integra saberes ancestrais dos terreiros de candomblé e práticas de agricultura urbana para restaurar folhas sagradas e alimentos nos quintais produtivos das periferias. A catalogação dessas espécies revelou os impactos da gentrificação e da perda de áreas verdes, mas também fortaleceu a continuidade das tradições de matriz africana. A experiência hoje dialoga com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e busca transformar-se em política pública de adaptação urbana e agroecológica.

Esses exemplos ilustram o que Thaynah chama de “adaptação a partir dos territórios”, conceito que rompe com a lógica centralizadora das políticas climáticas. Os dados e mapas gerados são compilados em relatórios e agendas de demanda que servem como instrumento de negociação com órgãos públicos e concessionárias. “É igualmente essencial o compromisso com a devolutiva, ou seja, retornar os resultados da análise para a comunidade de forma acessível e transparente, fortalecendo a mobilização contínua e a apropriação dos dados por aqueles que os geraram. Precisamos aproveitar os processos de construção das políticas para aprofundar a agenda de educação climática e socioambiental nos territórios, permitindo que esses saberes voltem a se integrar em nossos cotidianos”, apontou ela.

A assessora também destacou a necessidade de integrar educação climática e socioambiental às políticas públicas. Para ela, esse processo deve reconectar os saberes ancestrais com a agenda contemporânea de adaptação. “Os quilombos só existiram porque as pessoas negras tinham relações profundas com a terra e com os povos indígenas. A desconexão e o apagamento dessas populações são recentes, e o desafio é restabelecer esses vínculos e retomar o reconhecimento às contribuições das populações afrodescendentes como parte das estratégias de resiliência.”

Sua fala também recuperou a memória histórica do movimento negro na luta ambiental. Thaynah lembrou que enquanto o Geledés articulava debates sobre justiça ambiental e direitos reprodutivos na Rio-92, a Mãe Beata de Iemanjá liderava ações e mobilizações em torno da relação entre comunidades de terreiro e a proteção da natureza.

O depoimento de Thaynah Gutierrez sintetiza o que talvez seja a maior lacuna da política climática brasileira: a ausência de uma abordagem interseccional, intersetorial e participativa na formulação dos indicadores de adaptação. Suas conclusões reforçam que, sem a integração entre dados científicos, saberes locais e justiça climática, a meta global de adaptação corre o risco de permanecer abstrata e sem aplicação no Plano Clima Adaptação.

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