“Glória, a todas às lutas inglórias”: por que incendiar a estátua de Borba Gato é sobre revisionismo histórico?

FONTEPor Lorena Lacerda, enviado ao Portal Geledés
"Termos estátuas, homenagens a quem escravizou e colonizou não é uma coisa qualquer. É defender o que foi o processo da escravidão, da colonização, e reforçar que é natural que ela aconteça hoje" (Foto: Danilo Verpa/Folhapress)

No último sábado, dia 24 de julho, ocorreram manifestações contra o governo Bolsonaro e suas políticas genocidas em diversas cidades brasileiras. Em São Paulo, no bairro de Santo Amaro, grupos de manifestantes com sede de justiça histórica atearam fogo na estátua de Borba Gato, bandeirante escravocrata de pessoas negras e indígenas no século XVIII. Mas, o que essa atitude representa para o revisionismo histórico? Primeiramente, gostaria de pontuar que sou museóloga, com propriedade para falar do assunto para além de uma perspectiva militante e, obviamente, sem desvencilhar de quem eu sou: mulher negra. Vamos lá! As estátuas são construídas em espaços públicos para homenagear figuras que representam determinado momento da nossa história. E, infelizmente, o marco de uma sociedade colonialista está enraizado nessas estátuas que contam narrativas a partir do olhar eurocêntrico –tornando os nossos vilões em saudosos heróis. É muito simbólico que esses tidos como “ícones” (homens brancos, europeus, colonizadores) ocupem os espaços públicos, nas construções de monumentos e nomes de ruas, pois suas imagens fixadas na cidade inspiram poder e manutenção do status de uma memória coletiva vergonhosa: do sequestro e da escravidão dos corpos negros e indígenas. Essas estátuas, que demonstram soberania em nosso país, oprimem a nossa existência até os dias atuais. Imagine o quanto é desumano ver os torturadores dos nossos ancestrais em posição de destaque e memória nas cidades?

O intelectual Silvio Almeida, numa entrevista para o Roda Viva em 2020 sobre o assassinato de George Floyd e as manifestações “Black Lives Matter” nos Estados Unidos, que ocasionou protestos ao redor do mundo e a retirada destes símbolos coloniais, diz que há uma comoção quando essas estátuas são destruídas, mas não há nenhuma sensibilidade ou indignação quando morre um negro. Ele também defende o revisionismo histórico com a intervenção dessas homenagens, pois “construir uma estátua é um ato político e retirar uma estátua também é um ato político”. Nessa linha de pensamento, reforço que incendiar a figura do Borba Gato não é apagar a nossa história; pelo contrário, é entender o percurso de como um escravocrata foi erguido e consagrado, considerando a urgência de revisar o nosso passado para ressignificar o presente e projetar o nosso futuro. Nós, população brasileira, não podemos aturar mais essas violências simbólicas e históricas que açoitam a diversidade. A cidade e seus espaços públicos são plurais e não podem ser ocupadas por tiranos postos como célebre. Aldir Blanc e João Bosco, na composição “Mestre Sala dos Mares”, homenageia Antônio Cândido, líder da Revolta da Chibata (1910), onde marinheiros negros lutavam contra as violências físicas dos europeus, acendendo a resistência popular no Brasil. As chamadas “lutas inglórias”, nas quais seguimos recuperando para não nos esquecermos jamais, é que precisam ser expostas nas cidades como símbolos de orgulho e resistência.

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