Ilê Aiyê : 40 anos do orgulho negro do Curuzu

Segundo o Caderno de Educação Organizações de Resistência Negra, o bloco afro Ilê Aiyê surgiu a partir de um grupo de jovens negros (as) acostumados a promover atividades recreativas e culturais no bairro da Liberdade, em Salvador. Conhecido pelo nome de Zorra, essa juventude negra reunida em torno desse grupo sabia muito bem o que queria, pois acreditava que era possível através da dança, da estética, da música e do canto combater o racismo, buscar auto-estima para a raça negra e, por conseguinte, propor a idéia de “reafricanização” do carnaval de uma cidade onde imperava de maneira bastante forte o mito da democracia racial, bem como uma nítida segregação espacial no carnaval de Salvador. Realmente, creio que não foi nada fácil para aqueles negros e negras  corajosos e ousados, em plena ditadura militar, construir uma organização social, política e carnavalesca com o objetivo de assumir símbolos identitários africanos. O Ilê, no entanto, conseguiu apesar de todas as adversidades  impostas pelo racismo realizar essa verdadeira façanha no carnaval de 1975, ao fazer um desfile vestido com fantasia de guerreiro axanti, portando nas mãos de seus integrantes tabuletas de madeiras com palavras de ordem contra o racismo, inspiradas na luta do  movimento negro dos Estados Unidos da América. Posso citar, inclusive, os nomes de alguns  negros e negras que ousaram cantar o orgulho de ser negro (a) em plena Praça Castro Alves: Antonio Carlos dos Santos (Vovô), Dete Lima, Lili, Ana Meira, Eliete, Apolônio de Jesus, Jailson, Aliomar, Macalé, Sergio Roberto,Vivaldo, Ademário, etc.

Quando afirmei que não deve ter sido nada fácil para o Ilê realizar o seu primeiro carnaval. Talvez, tenha sido pelo fato de saber de certas histórias  que nem sempre são de conhecimento do grande público. Por exemplo, o primeiro nome que os fundadores do Ilê pensaram para criar a entidade foi Poder Negro numa clara alusão ao Black Power dos  afro-americanos. Entretanto, os fundadores do bloco afro foram  “aconselhados” por pessoas que trabalhavam na Polícia Federal a mudar de nome, pois a primeira proposta poderia ser identificada como coisa de comunista. Para fugir dessa repressão da ditadura militar, a saída foi adotar o nome de origem iorubá Ilê Aiyê, cuja tradução livre em português pode ser lida como Casa de Negro. Só que nada disso adiantou, visto que no primeiro desfile deste bloco afro “tinha mais policiais fora do bloco do que gente dentro”, como disse o próprio músico e educador do Ilê Sandro Teles em depoimento concedido para a Revista Caros Amigos. Na verdade, o Ilê para desfilar teve que  passar na Polícia Federal por uma verdadeira sessão de interrogatório e pressão psicológica, diga-se a bem da verdade.

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Ao falar sobre esses 40 anos de resistência do mundo negro como se diz lá em Salvador. Também não podemos  esquecer  das críticas injustas e tendenciosas que foram veiculadas por meio de uma nota  do Jornal  A Tarde do estado da Bahia contra o  primeiro desfile do Ilê Aiyê. O título dessa  nota publicada logo após a passagem do bloco pela Praça Castro Alves, sem assinatura, dizia: “Bloco Racista, Nota Destoante.” O Ilê acabou sendo acusado de separatista por trazer para as ruas de Salvador  um  “feio espetáculo”  e por trazer um problema racial que não fazia parte das relações sociais da nossa sociedade brasileira, segundo o conteúdo dessa nota divulgada no dia 12 de fevereiro de 1975. É interessante observarmos, nesse contexto, como a classe dominante da Bahia é racista e hipócrita, pois quando analisamos a história do carnaval na sociedade soteropolitana, percebe-se que a segregação social e espacial com recorte racial sempre fez parte das relações entre brancos e negros. Vejamos, por exemplo, o jogo ou brincadeira do Entrudo  na sociedade escravista e patriarcal em que os rapazes brancos podiam jogar farinha e  água nos negros. Já os negros tinham que brincar o Entrudo só entre o seu grupo étnico. Essa forma de vivenciar o carnaval sem neutralizar as hierarquias raciais entre brancos e negros foi mantida no final do século dezenove, já que os clubes carnavalescos como Fantoches da Euterpe, Politeama e Cruz Vermelha realizavam bailes para seus integrantes majoritariamente brancos. E, no século vinte, antes do surgimento do Ilê Aiyê no bairro da Liberdade os afoxés, batucadas e cordões formados por negros só podiam brincar carnaval em certos espaços reservados da capital baiana, a exemplo do Taboão, Baixa dos Sapateiros e Barroquinha. Será que o Jornal A Tarde nunca viu esse segregacionismo  ser praticado pelos clubes da elite branca de Salvador contra nós negros,  como fez por tanto tempo o  tradicional Clube Baiano de Tênis ?

O Ilê Aiyê, portanto, rompe com essa segregação espacial e étnica ao propor um novo estilo de vida ao povo negro de Salvador, tendo como meta a valorização da arte e cultura de origem africana historicamente tão desprezadas  pelas elites racistas, no Brasil. Na sua  histórica trajetória de luta ainda  somos obrigados a reconhecer que algumas ações sociais, educacionais e empreendimentos culturais  fizeram deste bloco afro referência de luta  contra o racismo neste país. Podemos citar, em primeiro lugar, a criação da Semana da Mãe Preta, em 1979, que surgiu como forma de homenagear todas as mulheres negras que morreram lutando contra a escravidão, assim como para reverenciar a já falecida Mãe Hilda Jitolu, chamada por todos do bloco com muito respeito e reverência de grande guardiã da fé e da tradição africana, pois como todos nós sabemos o Ilê Aiyê nasceu dentro do terreiro de candomblé da própria Mãe Hilda Jitolu.

Essa ação pioneira mencionada acima revela o compromisso político do afro Ilê  com a recuperação e preservação da memória de mulheres negras excluídas por essa historiografia eurocêntrica, excludente e racista que sempre valoriza os eventos e acontecimentos históricos sob o ponto de vista do homem branco europeu e brasileiro. Nesse sentido, vejo nesse tipo de projeto uma tentativa de fazer das afrodescendentes protagonistas da história, combatendo o sexismo e discriminação racial enfrentados pela mulher negra em todos os setores da sociedade, sobretudo no campo da produção do conhecimento histórico.  Na maravilhosa canção Negros de Luz, o compositor Edson Carvalho (Xuxu), chama a quilombola Zeferina de heroína. Acotirene de guerreira princesa negra e  Dandara de rainha da beleza. Com certeza, o coral negro não seria o que é sem a criatividade, inteligência e talento de tantos outros (as) compositores (as) que já morreram e de tantos que permanecem vivos (as), contribuindo de forma genial para a existência política e cultural dessa verdadeira realeza nagô. Cabe aqui citá-los: Buziga, Cissa, Mundão, César Maravilha, Jailson, Apolônio, Ademário, Geraldo Lima, Paulinho do Reco, Miltão, Adailton Poesia, Nem Tatuagem, Suka, Guiguio, Beto Jamaica, Itamar Tropicália, Alberto Pita, Cuiúba, Marcos Boa Morte, Jorjão Bafafé, Môa do Catendê,Valter Farias, Reizinho,Valmir Brito, Nelson Rufino, Odé Rufino, Gilson Nascimento, Gibi, Paulo Vaz, De Neve, Eloi Estrela, Sandro Teles, Mario Pam, Cláudio do Reggae, Marito Lima e Gusa.

Outra iniciativa exitosa envolvendo as relações de gênero. Foi a  realização nesse mesmo ano de 1979 da Festa da Mais Bela Crioula, uma festa que mais tarde passou a ser chamada de Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê. Nessa festa o Ilê escolhe a Deusa do Ébano, não só por ser bonita fisicamente, mas pelo fato de ser também uma mulher negra consciente de sua negritude, orgulhosa de ser negra e sabedora de suas raízes africanas. Portanto, ao fazer este tipo de concurso o bloco que valorizar a beleza da mulher afro-brasileira, mostrando através dessa mulher de origem africana o quanto o Bloco Afro Ilê Aiyê é repleto de exuberância, charme, elegância, força  e dignidade.

Gostaria de concluir esse texto  registrando o belo trabalho social, musical e pedagógico com crianças e jovens do bairro da Liberdade, por meio da Escola Mãe Hilda e da Banda Erê. Nessas ações educacionais e culturais as crianças aprendem a cantar, dançar e tocar instrumentos percussivos, além de aulas sobre cidadania e história das tradições africanas. Esse modelo educativo de sucesso acabou indo parar em outras escolas públicas de Salvador, fazendo do Ilê até hoje uma grande referência de luta no combate às desigualdades raciais no campo da educação, graças ao trabalho edificante e persistente de educadores e educadoras como Ana Célia da Silva, Maria de Lourdes Siqueira, Jônatas Conceição (in memórian), Dete Lima, Arany Santana, Lindinalva  Barbosa,  Hildelice Benta dos Santos, Jaime Sodré, Sandro Teles, Durvalina Cerqueira, Lícia Barbosa, Jô Guimarães, Isabelle Barbosa, Dayse Barreto, Valdina Pinto, etc.

Fico feliz  e orgulhoso só pelo fato de saber que a minha história de luta enquanto ativista do Movimento Negro de Campina Grande está ligada ao PEP- Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê, já que por duas vezes solicitei Cadernos de Educação e fui atendido com muito carinho e respeito  por esse brilhante bloco afro. Agora, o que me impressionou nessa história toda sobre os 40 anos de história do mais belo dos belos foi a presença iluminada de  uma  certa  professora, escritora, intelectual e pós-graduada em Estudos Africanos e Doutora em Educação pela UFBa  no Projeto Agosto da Igualdade-215 Anos da Revolta dos Búzios- Homenagem ao Poeta Arnaldo Xavier. Essa educadora chama-se Ana Célia da Silva do Ilê, que queria pagar sua passagem para palestrar em Campina Grande, mas eu não deixei por achar isso injusto, uma vez que Ana era a minha convidada.  Depois a professora falou que queria chegar na quinta- feira para prestigiar João Jorge do Olodum e Chico César no evento, embora a palestrar dela fosse acontecer somente no sábado pela manhã. Vi nesse seu gesto nobre um exemplo de como  deve ser uma grande ativista do movimento negro. Vi uma mulher espirituosa, solidária e que sabe muito bem representar com dignidade o Ilê Aiyê de Salvador.

Parabéns,  maravilhoso bloco do prazer ! E Viva os 40 anos do coral negro!

Autor: Jair Nguni – Historiador e militante do Movimento Negro de Campina Grande.

 

 

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