Justiça reparatória é tema de quatro intervenções de Geledés no Conselho de Direitos Humanos da ONU

16/10/25
Por Kátia Mello - [email protected]
Nas discussões sobre racismo em Genebra, assessor internacional do instituto apresenta visão ampla e sistêmica de reparação

Entre 8 de setembro e 8 de outubro de 2025, a sede das Nações Unidas em Genebra foi palco da 60ª sessão do Conselho de Direitos Humanos (HRC60), o principal órgão multilateral dedicado à promoção e à proteção dos direitos humanos. Criado em 2006, o Conselho reúne 47 Estados-membros — entre eles o Brasil, atualmente em seu sexto mandato. Geledés – Instituto da Mulher Negra, com estatuto consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC), teve participação de destaque ao apresentar declarações orais e escritas, além de realizar um evento paralelo que influenciou diretamente o rumo dos debates internacionais sobre justiça reparatória e igualdade racial.

Durante a sessão, o Geledés se destacou em quatro momentos em que as discussões se deram no Conselho: no debate geral sobre as temáticas e durante a apresentação dos relatórios do Grupo de Trabalho de Especialistas sobre Afrodescendentes, do Fórum Permanente sobre Afrodescendentes, do Mecanismo de Especialistas sobre Racismo e Aplicação da Lei (EMLER), além de promover seu próprio evento paralelo, “Estratégias para Avançar a Justiça Reparatória para Africanos e Afrodescendentes na Arena Internacional”, que aconteceu no dia 30 de setembro, conforme aqui já registrado.

Essas intervenções refletiram uma presença política sólida e tecnicamente qualificada, projetando no espaço multilateral a experiência de Geledés acumulada nos fóruns da ONU. Em especial, neste Conselho de DH, o instituto se debruçou nas estratégias para se avançar na justiça reparatória na agenda global. A temática coincide com marcos históricos, uma vez que a União Africana declarou 2025 como o Ano da Justiça para Africanos e Afrodescendentes e a ONU anunciou a Segunda Década Internacional para os Povos Afrodescendentes (2025-2034).

Na apresentação do relatório do Grupo de Trabalho de Especialistas sobre Afrodescendentes, o representante internacional do Geledés, Gabriel Dantas, interviu dizendo que “o legado colonial exige justiça reparatória — incluindo restituição, compensação, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição”. Ele propôs que o Conselho crie uma Discussão Anual sobre Justiça Racial e Reparatória, nos moldes da já existente sobre gênero, “com mandato para que o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e os mecanismos do Conselho elaborem uma matriz de ação com metas e acompanhamento efetivo”. Para Dantas, essa integração é urgente: “onde o racismo se normaliza, as instituições se erodem e os direitos recuam”.

Na explanação do relatório do Fórum Permanente sobre Afrodescendentes, o assessor internacional de Geledés defendeu uma visão ampla e sistêmica da reparação. Dantas ressaltou que “a democracia depende do antirracismo” e que “os espaços da ONU dedicados à agenda racial precisam intervir também nos debates econômicos”. Ele citou como exemplo o processo em curso para a Convenção Fiscal das Nações Unidas, que, segundo ele, “deve refletir uma lente de justiça reparatória e criar instrumentos fiscais capazes de operacionalizar reparações para africanos e afrodescendentes”.

Nas discussões sobre violência policial e segurança pública — tema tratado pelo EMLER, o tom de Dantas foi ainda mais incisivo: “justiça reparatória é impossível se corpos continuam sendo assassinados — especialmente corpos afrodescendentes. Não há desenvolvimento sem vida.” Ele chamou atenção para o caso brasileiro: “enquanto indicadores nacionais mostram uma modesta queda na violência, a letalidade policial em São Paulo mais que dobrou — um alerta grave”. Para ele, “a democracia precisa ser real, não retórica. Agendas políticas que instrumentalizam o racismo corroem instituições e produzem mortes.”

No debate geral do Item 9, dedicado ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e às intolerâncias correlatas, Dantas reforçou que “uma agenda de justiça reparatória não é periférica, mas fundamental à ordem democrática e à governança econômica legítima”. Defendeu, novamente, a criação de uma Discussão Anual sobre Justiça Racial e Reparatória, propondo que o ACNUDH envolva também atores econômicos e financeiros, “para que o antirracismo e as medidas reparatórias sejam integrados em todas as políticas de desenvolvimento e de financiamento climático”.

O evento paralelo organizado por Geledés foi um dos pontos altos da sessão. Intitulado “Estratégias para Avançar a Justiça Reparatória para Africanos e Afrodescendentes na Arena Internacional”, reuniu diplomatas, especialistas e representantes da ONU, além de organizações da sociedade civil de diferentes regiões. O debate reafirmou que reparação não é símbolo, é estrutura — e que é preciso alinhar discurso e orçamento, princípios e governança. “A justiça reparatória também exige sinergia sistêmica”, afirmou Dantas. “O conhecimento produzido pela arquitetura antirracista da ONU deve transitar para outros espaços decisórios — sobretudo os que definem regras e recursos. As discussões em torno da Convenção Fiscal da ONU, por exemplo, precisam incorporar uma lente reparatória e promover instrumentos fiscais que reparem.” E concluiu: “o clima geopolítico é difícil e os recursos da ONU são limitados, mas isso exige mais coordenação, clareza e coragem. Não há desenvolvimento sem vida, e não há resiliência democrática sem antirracismo.”

Entre as decisões mais marcantes da 60ª sessão, o Conselho aprovou a resolução proposta por Gana, intitulada “Da Retórica à Realidade: Um Chamado Global para Ações Concretas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância”. O texto reafirma a centralidade da Declaração e Programa de Ação de Durban (2001) como um marco global de combate ao racismo, reconhecendo a escravização, o tráfico transatlântico e o colonialismo como crimes contra a humanidade. O documento conclama os Estados a adotarem medidas concretas de reparação — restituição, compensação, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição — e a fortalecer políticas de memória, educação e preservação de arquivos sobre a escravidão e o colonialismo.

Em sintonia com essa agenda, o Grupo de Trabalho Intergovernamental sobre a Implementação Efetiva da Declaração e Programa de Ação de Durban apresentou, em janeiro de 2025, recomendações para a comemoração do 25º aniversário da Declaração de Durban, a ocorrer em 2026. As deliberações, realizadas em Genebra durante sua 23ª sessão (13 a 17 de janeiro de 2025), preveem atividades políticas, culturais e institucionais voltadas a reafirmar o compromisso internacional com a reparação e com a erradicação do racismo estrutural.

Com sua participação estratégica e propositiva, Geledés consolidou uma posição de alta performance diplomática e técnica no Conselho de Direitos Humanos. Ao traduzir a experiência do movimento negro brasileiro em uma agenda global, o instituto reforçou que a justiça reparatória não é apenas uma reivindicação histórica, mas uma condição contemporânea para a democracia, a igualdade e o desenvolvimento sustentável. Como bem lembrou Dantas durante evento de Geledés, a justiça reparatória só será calcificada se penetrar diretamente no coração decisório dos órgãos responsáveis pelos fluxos financeiros e por políticas de desenvolvimento. “As atuais negociações da Convenção Fiscal da ONU, por exemplo, deveriam ser atravessadas por essa lente”, afirmou ele.

A 60ª sessão, marcada pela convergência entre sociedade civil e Estados, apontou para um horizonte em que o antirracismo se consolida como princípio estruturante da ordem internacional — e a reparação, como seu caminho inevitável.


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