Livro Um Defeito de Cor inspira enredo da Portela de 2024

Obra de Ana Maria Gonçalves conta a história de Luísa Mahin

FONTEAgência Brasil, por Cristina Índio do Brasil
Divulgação

A Escola de Samba Portela gosta de levar para a Passarela do Samba na Marquês de Sapucaí, na região central do Rio de Janeiro, enredos literários. Para 2024, o tema é Um Defeito de Cor, nome da obra da escritora Ana Maria Gonçalves, que recebeu com entusiasmo a notícia da escolha do seu livro.

Entre os desfiles anteriores, em 1966 a azul e branca foi para a avenida com o enredo Memórias de um Sargento de Milícias, inspirado em livro de Manoel Antônio de Almeida. Dois anos depois escolheu O tronco do Ipê, baseado em romance de José de Alencar. Em 1973, foi a vez de Pasárgada, o amigo do rei, com base no poema de Manuel Bandeira; e em 1975 se apresentou com Macunaíma, herói de nossa gente no romance de Mário de Andrade.

A história do enredo vai se desenvolver na avenida por meio de uma carta sonhada pelos carnavalescos Antônio Gonzaga e André Rodrigues, na qual o baiano Luís Gama, advogado, abolicionista, orador, jornalista, escritor e o patrono da Abolição da Escravidão do Brasil, se dirige a sua mãe Kehinde, chamada no Brasil de Luísa Mahin, de quem foi separado ainda criança. Nascido de mãe negra ex-escravizada livre e pai branco, Gama foi vendido como escravo aos dez anos, pelo próprio pai, que estava com dívidas acumuladas. Na carta, Gama valoriza o legado que a mãe deixou, relatado no livro.

“Lembrando das histórias que me contava, estou tal qual um pássaro, como se voasse, buscando em minha cabeça cada lugar que pisou, capaz de ser você em cada encontro que tivesses nesses longos anos. Até hoje quando repasso tuas memórias, procuro ter olhos de Daomé, olhos de jeje, olhos de águia (que era o espírito preferido da mãe de vossa mãe)”, indicou o texto da sinopse.

“Honrar quem veio antes é o que faço. Eu sou porque tu fostes, minha mãe”, pontua a carta imaginada.

Proposta

O enredo do próximo ano foi proposto pelos carnavalescos Antônio Gonzaga e André Rodrigues, que pela primeira vez estão à frente do carnaval da azul e branca de Oswaldo Cruz e Madureira, bairros da zona norte do Rio. Gonzaga disse que apesar de começarem a trabalhar juntos há pouco tempo, os dois já tinham o desejo de desenvolver um enredo baseado no livro.

“O enredo da Portela nasceu de dentro da gente e da nossa vontade de falar sobre o que nos une na arte, no samba e nas nossas heranças. Somos dois artistas negros fazendo a centenária Portela. A escolha do Um Defeito de Cor foi exatamente esse encontro de trajetórias. É um enredo que nós dois já tínhamos vontade de desenvolver, mas que só fomos descobrir isso quando nos juntamos na Portela”, contou à Agência Brasil.

Segundo André Rodrigues, no ano passado, quando era um dos carnavalescos da Beija-Flor de Nilópolis, chegou a apresentar uma proposta de enredo baseado no livro e a mãe do Antônio já tinha indicado, para o filho, que a obra seria um bom tema de enredo, “Quando chegamos juntos na Portela, juntou a fome com a vontade de comer. Os dois tinham muita vontade de fazer esse enredo e a gente super mergulhou de cabeça de que esta seria a melhor proposta para o atual momento da Portela”, comentou à reportagem.

Gonzaga revelou ainda que a partir da escolha do tema baseado no livro, ele e André pensaram em desenvolver o enredo com um recorte, dando tratamento mais pessoal para a história e pensando em um reencontro de Gama com a mãe. “Nós dois assumimos a voz de Luís Gama homenageando Kehinde como uma forma de homenagearmos também nossas próprias mães e as mulheres negras que geraram nossa história de luta. Conversamos muito com a Ana Maria e estamos mergulhados nessa narrativa para fazer a Portela voar alto”, afirmou.

O texto da apresentação do enredo, ou sinopse, publicado no site da azul e branco, indica que para 2024, o sonho da escola “está baseado no principal fator simbólico que dá consistência para ela ser o que é e chegar onde chegou: O Afeto”. E é exatamente esse, que André acha ser o destaque, também, no tratamento dado à escola.

“Nós decidimos que o afeto seria a principal palavra da Portela este ano, seria o fio condutor de tudo que faríamos para a Portela. Uma escola que está completando 100 anos, precisa de carinho, de cuidado, essa manutenção daquilo que, realmente, move uma escola de samba que são as pessoas. Então a gente achou que o afeto seria a melhor coisa”, relatou, destacando ainda que a história é rodeada de afeto na trajetória de Kehinde, repleta de outras mulheres que lhe indicaram caminhos.

Para Gonzaga, o sentimento que os dois querem passar com o enredo é orgulho. “Orgulho de onde nós viemos, de quem nos tornamos e por quem lutamos. É uma história de luta e de momentos de dor profunda, mas o sentimento que queremos transmitir é realmente desse orgulho e desse amor que o filho sente da história de sua mãe. Uma mãe que carregou a África em seu peito e que ajudou a construir a liberdade do povo preto no Brasil. Que passou por tudo o que passou e sobreviveu graças ao amor e ao apego às suas crenças, sua fé e seu ímpeto por justiça e libertação”, acrescentou.

Os dois carnavalescos contaram que não há divisão no trabalho, mesmo sendo a primeira vez que trabalham juntos. Segundo Gonzaga, eles já se conheciam e há muito tempo se respeitavam como artistas.

“É muito bonito viver esse momento ao lado do André. Sinto que nos encontramos num momento muito importante para nós dois e vamos honrar essa oportunidade linda de desenvolver o carnaval da Portela. O processo de trabalho não tem divisão exata. Trabalhamos discutindo tudo do processo. Cada um com sua técnica. Nós somamos muito um ao outro e isso tem resultado num processo muito rico de carnaval. Temos muito cuidado para que tudo fique exatamente da forma que nós dois sonhamos e com uma coerência visual e discursiva”, resumiu.

“Tudo é feito a quatro mãos. Aquilo que eu desenho vai para a mesa do Antônio para ele ver o que acha e vice-versa. Não existe uma divisão de trabalho. Tudo é feito como se fosse uma cabeça só e tem sido muito prazeroso. Ele é um pouco mais novo em experiência de carnaval, sou um pouco mais velho que ele, mas tem sido revigorante”, contou André.

A satisfação de estar à frente do carnaval da Portela é para os dois uma sensação de grande responsabilidade e a realização de um sonho. “É sobretudo uma grande honra. É uma grande responsabilidade.Tenho muita consciência do tamanho da Portela e da paixão que move sua torcida, seus segmentos e seus componentes. É uma felicidade enorme ser carnavalesco da Portela e essa felicidade é combustível pro nosso sonho de carnaval. Queremos que toda a Portela sonhe com a gente e que a gente faça essa história tão incrível tocar mais e mais pessoas”, disse Gonzaga.

Para André, comandar o enredo da Portela para 2024 é neste momento, também muito reflexivo por se tratar de dois jovens carnavalescos pretos à frente da mais antiga escola de samba que completa o centenário este ano.”Significa muita coisa. Significa, talvez, o reencontro da própria Portela com seus personagens principais, que eram pessoas pretas”, pontuou, acrescentando que para eles o princípio é manter a essência da Portela como escola de samba.

“Esse trabalho não se sobrepõe à Portela. A gente não tem essa empáfia, essa soberba de achar que nossa produção artística é maior que a Portela”, concluiu.

Para a autora Ana Maria Gonçalves, que defende a popularização da literatura, diante do alcance da audiência e da repercussão dos desfiles das escolas de samba do Rio, o seu objetivo será alcançado.

Mostra

Um Defeito de Cor também é tema da mostra de mesmo nome no Museu de Arte do Rio (MAR), na Praça Mauá, zona portuária da cidade, que pode ser vista até o dia 14 de maio. Ela traz uma interpretação do livro, lançado há 17 anos e já considerado um clássico da literatura afrofeminista brasileira. Trata-se de uma “história real romanceada”, explica a autora na introdução da obra, e traz a saga de Kehinde, natural do Reino de Daomé e sequestrada na costa de onde é hoje a República do Benin, aos seis anos de idade, e trazida para o Brasil como escrava no início do século 19.

A revisão historiográfica da escravidão aborda lutas, contextos sociais e culturais do século, com 400 obras como desenhos, pinturas, vídeos, esculturas e instalações de mais de cem artistas brasileiros e africanos, incluindo trabalhos inéditos de Kwaku Ananse Kintê, Kika Carvalho, Antonio Oloxedê, Goya Lopes, produzidos especialmente para a mostra.

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