Miriam Leitão vê preconceito na revista época

Miriam Leitão vê preconceito na revista época

Segundo colunista do Globo, tratamento da revista, também das organizações Globo, às relações entre homem e mulher ainda coloca o sexo feminino em condição de inferioridade.

A jornalista Miriam Leitão, do Globo, se incomodou muito com a reportagem de capa da revista Época, em sua última edição. E quase escreveu carta à redação para manifestar seu desconforto. Leia abaixo:

Porta da modernidade

A nova lei do emprego doméstico é uma grande oportunidade de mudanças. Não será fácil nem indolor, mas terá profundas repercussões sociais, econômicas, comportamentais, familiares. Demandará muito de todos nós, imporá exigências às políticas públicas. É progresso. Chegou em um momento em que as domésticas podem escolher onde trabalhar.

O número de trabalhadores no emprego doméstico tem caído, e a renda tem aumentado. Sinal de que há mais demanda que oferta dessa mão de obra e novas oportunidades no mercado de trabalho.

Ficará mais caro ter empregado doméstico, mas é um avanço natural. Dar os mesmos direitos a todos os trabalhadores é progresso. Quer que a pessoa trabalhe até mais tarde num dia em que receberá amigos para jantar? Perfeito, a funcionária será paga por hora extra. Quer romper o contrato de trabalho? Perfeito, ela terá o mesmo direito que todos os trabalhadores do mercado formal.

Há uma burocracia infernal no mercado de trabalho. Ótima hora para o governo simplificar. Nas casas, isso é mais urgente porque não há contador. O governo poderia simplificar também a parafernália regulatória para a pessoa jurídica.

Novas oportunidades se abrem em todas as áreas. A família que tem duas empregadas, ou mantém a funcionária em horas excessivas, terá agora de exigir colaboração de todo o grupo familiar.

A revista Época fez, há uma semana, uma reportagem sobre “o que as mulheres querem dos homens”. No texto sobre a nova divisão de tarefas, o subtítulo é “os homens nunca ajudaram tanto nos afazeres domésticos e no cuidado com os filhos”. Na legenda: “Os homens se sentem mais à vontade para ajudar no cuidado com os filhos.” Na segunda legenda: “Ele ajuda tanto nas tarefas domésticas que o casal dispensou a empregada.” O que me espantou foi a insistência no verbo errado. Quis escrever uma carta para a publicação:

“Querida revista Época, como leitora, assinante e admiradora da publicação, gostaria de lembrar que ‘ajudar’ pressupõe que a obrigação – no cuidado da casa e dos filhos – é da mulher. Isso não faz mais sentido. Portanto, sugiro que da próxima vez que fizerem reportagem tão interessante esqueçam o verbo ‘ajudar’ se forem falar da divisão do trabalho entre pessoas que têm responsabilidades iguais.”

As crianças mimadas que crescem gritando que a empregada lhes dê tudo na mão, como se inválidas fossem, ou que não sabem manter o mínimo de ordem em seus espaços, terão que mudar os hábitos. A funcionária terá menos tempo, pois terá que se dedicar às questões essenciais.

As políticas públicas terão que aumentar a oferta de creches ou escolas em horário integral. Antes, isso era uma aflição das domésticas. Elas também são mães e precisam deixar seus filhos. Agora, a classe média exigirá creches.

A expressão “ela virou uma pessoa da família” não precisará ser abolida, mas não será mais a desculpa para uma relação ambígua em que não são respeitadas as exigências de remuneração extra para o trabalho extra das domésticas. Favores, presentes, pequenas concessões não substituem direitos, garantia e remuneração.

Essa lei é o umbral da modernização há muito tempo necessária na cena brasileira. O governo terá de simplificar regras burocráticas. As famílias terão que formalizar relações que hoje são pouco claras. Os maridos trocarão o verbo ajudar por dividir e compartilhar. As crianças terão que ser menos exigentes. As empresas terão que ter políticas corporativas mais flexíveis para que trabalhadores de ambos os sexos possam compatibilizar o cuidado com os filhos e a carreira. Não vai ser fácil para ninguém, mas o Brasil será mais moderno.

“Chegou em um momento em que as domésticas podem escolher onde trabalhar.”

Fonte: Brasil 247

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