Maria Clara de Sena, 37, conhece o lado obscuro de ser uma mulher travesti.
Por Caio Delcolli, do HUFFPOST BRASIL
Antes de viver plenamente sua identidade de gênero e ser a primeira mulher trans indicada ao Prêmio Claudia, da revista de mesmo nome, a funcionária pública de Recife foi vítima de violências em meio à própria família, usou drogas e teve que se prostituir para não voltar para a casa do pai que lhe rejeitava e agredia.
No entanto, apesar de todas as dificuldades, ela conseguiu reverter a situação.
Hoje, por meio de seu trabalho no projeto Fortalecer para Superar Preconceitos, da ONG de direitos humanos Grupo de Trabalhos em Prevenção (GTP), ela ajuda mulheres trans detentas. E já chegou a conseguir uma ala exclusiva para elas em uma prisão, onde não ficaram mais expostas à exploração sexual de detentos homens.
A ideia veio do atendimento que a própria Maria Clara recebeu da organização – ela reparou que a maioria da população atendida acabava encarcerada.
Atualmente estudante de serviço social e funcionária no Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, órgão pernambucano que segue recomendações da ONU, ela verifica delegacias, asilos, presídios e clínicas de reabilitação para dependentes químicos, lugares em que maus-tratos são frequentes.
“A gente precisa de políticas públicas, como decretos estaduais e portarias, mas isso são gambiarras. Isso tem que se tornar leis específicas, aí as pessoas vão respeitar”, conta em entrevista ao HuffPost Brasil.
“Não queremos só o nome social, queremos nome em registros. Se você vai a um cartório, dizem que não podem fazer e não fazem, porque há uma ordem jurídica. São anos tentando para conseguir o nome no registro. Por que só Xuxa e Pelé têm o direito de trocar o nome? Por que nós não?”
O contato com os direitos humanos foi peça-chave na vida de Maria Clara. Com ajuda do conhecimento, ela passou a entender melhor alguns acontecimentos que já viveu.
Aos sete anos de idade, por exemplo, seu pai a espancou ao vê-la ajeitando o shorts com gestos delicados.
Anos mais tarde, caiu em uma cilada: uma amiga lhe prometeu um emprego em João Pessoa, mas chegando lá, não era isso que havia para ela.
As economias guardadas acabaram e Maria Clara se tornou prostituta. Começou a usar drogas, tomar hormônios femininos sem orientação de médicos e fez cirurgias em clínicas ilegais.
“Na minha infância, houve bastante perseguição. Nasci biologicamente com um pênis, mas quando comecei a andar, falar, meu pai viu que eu não condizia com os anseios biológicos. Ele me batia muito, dizia que era errado”, conta.
Maria Clara sofreu bastante na escola também – ela diz que a discriminação a fez se tornar uma pessoa “insegura, com sequelas”.
“Foi o que me levou ao caminho para me defender. Preciso me esconder para não sofrer violência. Em casa, por ser trans; na rua, tanto por ser trans quanto pela raça.”
“Quando resolvi cuidar da minha vida, entender de fato o que eu era, depois de várias negações familiares, saí de casa. E percebi [aos 19 anos] que sou uma mulher travesti. Eu via outras meninas que passaram pelo mesmo processo que eu. Sabia que elas não tinham útero, mas socialmente se apresentavam como tal.”
O Estado não a protegeu, conta ao HuffPost. Pelo contrário. Policiais que fazem ronda à noite já a roubaram e estupraram. As vezes em que tentou prestar queixas de clientes na delegacia, era motivo de chacota. Seus agressores nunca foram punidos.
“Por essa agressão social, que muitas vezes pagamos com a vida, precisamos de defesa. Estou pesquisando o que levam pessoas LGBT ao sistema prisional”, diz.
“As meninas estão dentro do sistema porque elas cometem roubo, furto, tráfico e latrocínio. Está tudo ligado. Elas não tiveram oportunidades. Eu sou a prova viva disso.”
Maria Clara diz que, além de oportunidades, o “amor” é tão necessário quanto.
“Não queremos mais, nem menos. Queremos direitos iguais, como está na Constituição.”
Ela diz que não entende casos como o da travesti que, recentemente, foi espancada por três homens no Rio.
“Essas pessoas não tiveram a oportunidade de serem amadas, mas desamadas. O amor constrói e o ódio não existe. O que existe é a falta de amor.”
Você pode votar em Maria Clara para o Prêmio Claudia aqui.