Roquinaldo Ferreira
Departamento de História – Universidade da Virginia
Introdução
Este artigo analisa a formação da cultura crioula de Angola nos séculos XVII e XVIII. O título faz referência direta ao ensaio clássico do historiador angolano Mário António de Oliveira sobre os efeitos da presença portuguesa em Angola – principalmente em Luanda e presídios interioranos. Fundada em 1576, Luanda, teria sido um centro difusor de uma cultura crioula, que mesclava elementos da cultura européia e africana. A cidade foi um “centro de irradiação da influência cultural que acabou delimitando a realidade e geografia que herdaria um nome de linhagem reinante nativa, ele próprio aportuguesado, num testemunho deste contacto: Angola, de Ngola”. Segundo Oliveira, o “amálgama bio-social que os portugueses realizaram nos trópicos” pressupunha africanos inevitavelmente adotando traços culturais europeus – uma espécie de processo civilizatórios cuja hegemonia residiria no lado português. Assim, na visão tipicamente lusotropicalista deste historiador angolano, a cultura portuguesa teria uma inerente plasticidade – já existente antes mesmo da chegada ao solo africano – que teria criado as condições para a síntese cultural e social definida como crioulidade.1
Na tentativa de demonstrar que a fluidez sóciocultural angolana talvez não tenha sido tão singular como pressuposto por Oliveira, este artigo propõe uma análise comparada de processos de interação cultural em diferentes regiões africanas. Para tanto, a primeira seção do texto faz uma “genealogia” do termo criolo/crioulidade, traçando a pluralidade de significados e problemático usos do termo na literatura. Na segunda seção, faz-se uma análise comparada de processos de crioulização na África Atlântica. Em geral, como demonstrado por Kristin Mann e Robin Law, tais processos estavam umbilicalmente relacionados com o crescimento do comércio atlântico de escravos.2 Assim, com variações que dependiam da intensidade do comércio e estratégias políticas específicas dos africanos, amálgamas culturais foram também característicos em várias regiões da África Atlântica – desde a Senegâmbia até Angola. Por último, o texto se debruça sobre as peculiaridades do caso angolano, onde a intensidade do tráfico de escravos causou uma inigualável integração com o atlântico mas a crioulidade era definida e plasmada primordialmente pela cultura africana. Para analisar o impacto de tal fenômeno na geopolítica das relações comerciais entre Luanda e os reinos Mbundu do interior, o texto reconstrói a trajetória de um “crioulo” – o negociante Francisco Roque dos Santos.
(Re) Definindo Crioulidade/Crioulos
A definição de crioulo/crioulidade está longe de ser consensual. Para Alison Games e Paul Lovejoy, o conceito é dúbio porque faz referência tanto aos filhos de europeus nascidos nas Américas quanto ao escravos aqui nascidos.3 As ambigüidades afloram também da controvérsia que cerca o debate antropológico sobre crioulidade nas Américas. Neste debate, apesar das nuances, as posições dos antropólogos Franklin Frazier e Melville Herskovits servem de diretrizes.4 Assim, seguindo uma linha que se assemelha ao ponto de vista de Frazier, antropólogos como Sidney Mintz e Richard Price argumentam que o impacto do tráfico de escravos transformou em tabula rasa o legado cultural dos africanos escravizados nas Américas. Assim, a cultura aqui construída foi eminentemente nova.5 De outro lado, ecoando os argumentos de Herskovits, intelectuais como John Thornton, Paul Lovejoy, Gwendolyn Hall, Colin Palmer, James Sweet e Douglas Chambers, argumentam que matrizes culturais africanas (no caso de Thornton, o afro-catolicismo Bakongo) cumpriram papel fundamental na sociabilidade e cultura africana nas Américas.6
A visão aqui adotada é inspirada pela reflexão de Mann, para quem o debate (ou impasse) entre crioulização e retenção cultural africana se exauriu, sendo preciso historicizar as transformações das culturas africanas tomando a África como ponto de partida.7 Nesta, o termo crioulo parece ter surgido na costa ocidental da África, no século XIX. Naquele contexto, mais especificamente em Serra Leoa, a colônia criada pela Inglaterra para acolher escravos africanos retornados das colônias britânicas, referia primordialmente as comunidades que surgiram no bojo do esforço inglês para banir o tráfico de escravo.8 Segundo Blyden, “esta população de negros cristão e ocidentalizados, [era] freqüentemente designada de crioula”.9 Na essência, a idéia de uma assimilação de valores europeus já era entendida como pressuposto fundamental na dinâmica crioula.10
Mais recentemente, o conceito tem sido usado para analisar as transformações culturais e identitárias de indivíduos envolvidos com o comércio atlântico – na condição de escravos, escravocratas ou trabalhadores do tráfico. Neste caso, pressupõe maleabilidade identitária e capacidade de transição entre universos culturais díspares, tendo caráter transracial e transcultural. Como é afirmado por Luis Nicolau Parés, “o interessante desta proposta é que ela questiona o cenário assimilacionista que pressupõe que africano e crioulo são dois estágios consecutivos de um processo de mudança de geração, irreversível e unidirecional”.11 Ira Berlin argumenta que “crioulos atlânticos tinham em parte ou integralmente características culturais da África, Europa e Américas”, mas não pertenciam a nenhum destes lugares, sendo ao mesmo tempo parte dos “três mundos que se integraram no litoral Atlântico”.12 “Familiarizados com o comércio atlântico, fluentes com suas novas linguagens, e íntimos com suas culturas e finanças, eram cosmopolitas no sentido pleno da palavra”.13 Embora centrada na primeira geração de africanos trazidos como escravos para a América do Norte, no início do século XVII, a análise de Berlin tem inspirado ou se assemelha a conceitos empregados em estudos sobre o tráfico de escravos e outras regiões do Atlântico – África, Brasil e Caribe.
No caso da África, Mann e Law afirmam que “o aparato conceitual desenvolvido por Berlin – uma cultura cosmopolita que ligava portos em várias partes do Atlântico – é aplicável para um período posterior [séculos XVIII e XIX]”.14 Seria esta cultura, segundo Randy Sparks, que teria permitido que dois africanos Efke (Little Ephraim Robin John e Ancona Robin Robin John) ilegalmente levados da Baía de Biafra por um navio negreiro, em 1734, fossem capazes de recuperar a liberdade e retornar para a terra natal depois de anos de exílio e trabalho escravo no Caribe e Estados Unidos.15 Em Angola, seria moldada primordialmente a partir da cultura africana – não a partir da cultura européia – e teria permitido a africanos escravizados naquela região (crioulos atlânticos) mais fácil integração ao ambiente colonial nas Américas.16 No caso de Benguela, Mariana Candido argumenta que “o envolvimento de indivíduos com o comércio, mobilização de soldados e constante migração expandiu a cultura crioula para o interior [do sul de Angola]”.17
O conceito de crioulo atlântico tem também inspirado análises do tráfico de escravos e regiões das Américas. Assim, em estudo sobre o tráfico de escravos britânico, Emma Christopher considera os marinheiros africanos dos navios negreiros ilustração fiel dos crioulos atlânticos.18 No Brasil, embora não diretamente inspirada pelo trabalho de Berlin, a análise de Alida Metcalf e Stuart Schwartz se vale de aparato conceitural semelhante, demonstrado claramente que embora a hegemonia cultural de mestiços/mamelucos (ou go-betweens/atlantic creoles) estivesse longe de ser européia, quase sempre ocasionava desvantagem comercial para as populações nativas.19 No caso das relações entre Caribe e África, Jon Sensbach qualifica como crioulos atlânticos o casal de missionários moravianos Christian e Rebecca Protten, professores na escola para criaças mulatas no forte dinamarquês Christonborg, na costa do Ouro.20
Crioulidades
Ao contrário do que é pressuposto por Oliveira, a fluidez da dinâmica sócio-cultural angolana não parece ter sido essencialmente inovadora. Na verdade, a formação de “ilhas crioulas” foi uma característica presente em várias regiões expostas aos contatos comerciais com os europeus. Como será visto mais adiante, o que distingue Angola é a escala e intensidade deste processo – muito maior do que em outras regiões africanas –, assim como o processo de “reafricanização” dos crioulos. Nesta seção, faz-se uma análise de cada uma destas regiões (Senegâmbia, Costa do Ouro, Golfo de Benin e Baía de Biafra). No contexto do tráfico, tais regiões foram origem e/ou ponto de embarque de aproximadamente cinqüenta por cento dos africanos compulsoriamente trazidos para as Américas.21
Na Senegâmbia, a primeira região significativamente afetada pelo comércio atlântico português, a análise de Ivana Elbl demonstra que a formação de comunidades crioulas derivou da fraqueza portuguesa no comércio com os africanos.22 Segundo Philip Curtin, “por volta de 1630, os afro-portugueses não mais operavam individualmente, mas sim como uma diáspora coordenada cujo raio de ação se estendia de Cabo Verde até o Rio Gâmbia”.23 Em análise recente, Walter Hawnthorne afirma que, “na Senegâmbia, os lançados, que definiam sua identidade usando como marcas de distinção uma cultura altamente mesclada, refletida diretamente na arquitetura, elementos lingüísticos e religiosos, eram forças dominantes no comércio atlântico.24 Segundo George Brooks, estes “usavam todos os meios à sua disposição para impedir que seus rivais europeus os superassem no papel de intermediários” do comércio costeiro.25 No final do século XVIII, numa estimativa certamente exagerada, um viajante francês situou em quinze mil o número de afro-europeus na Senegâmbia.26
Na costa do Ouro, seria apenas no final do século XVII que o tráfico de escravos se tornaria mais importante do que o comércio de ouro.27 Nesta região, onde várias nações européias (Holanda, Inglaterra, Dinamarca e Suécia) construíram um número considerável de fortes para o trato de escravos, as relações comerciais eram marcadas pela ativa presença dos afro-europeus. Segundo Feinberg, na década de 1730, o número de fortes chegava a 31.28 No entanto, numa análise que também inclui o século XIX, DeCorse calcula o número de fortes europeus em sessenta.29 Como assinalado por Catherine Coquery-Vidrovitch, incluindo os estabelecimentos secundários, o número de entrepostos subiria para mais de cem.30 Como recentemente analisado por Rebecca Shumway, estes fortes precederam o período do pico do tráfico de escravos e foram criados no contexto da exploração de ouro naquela região.31
Aqui, uma das dimensões da dinâmica crioula pode ter sido a associação direta entre crioulidade e mulatos. Segundo Christopher DeCorse, “os mulatos eram reconhecidos como um segmento distinto da população [de Elmina] já no século XVI”.32 Nos vários fortes europeus, existiam até escolas especialmente para afro-europeus. No caso do forte inglês, por exemplo, uma escola para euro-africanos foi criada em 1694.33 Em Elmina (sob controle holandês), o número de alunos chegava a 400, em 1740.34 No forte dinamarquês, só filhos e filhas mulatas de uniões entre europeus e africanas eram aceitos.35 Muitas vezes, como no caso de Christian Protten, jovens afro-europeus eram enviados para a Europa para melhor aprender (ou aperfeiçoar) línguas européias.36
De qualquer forma, a presença dos afro-europeus foi vital para o funcionamento das comunidades costeiras da costa do Ouro – principalmente nos fortes europeus e áreas adjacentes. Segundo Rebecca Shumway, “por volta de 1750, a maioria dos cargos militares e muitos intérpretes e postos comerciais [nos fortes ingleses da costa do Ouro] eram ocupados por mulatos”.37 Analisando as relações entre holandeses e africanos, Trevor Getz constatou que “foi em virtude das ações de John Currantee e Amonu Kuma [dois afro-europeus] que os traficantes de Anomabu tiveram uma posição privilegiada no tráfico de escravos”.38 No século XIX, “um pequeno e inusitado grupo de habitantes da cidade de Elmina tinha emergido com especial proeminência nos assuntos políticos e dinâmica social da cidade”.39 Nesta altura, o número de afro-europeus foi estimado em seis mil indivíduos e a comunidade crioula assumiria caráter transracial com o ainda pouco estudado retorno de ex-escravos do Brasil e Caribe.40
Mesmo na baía de Biafra, onde o tráfico de escravos foi relativamente tardio, tornando-se significante apenas na primeira metade do século XVIII, houve também um processo de crioulização localizada, que envolveu primordialmente as elites locais. Lá, ao contrário da costa do Ouro, os europeus não foram nunca capazes de instalar fortes e quase nunca saíam dos seus navios.41 Ao lado do controle absoluto das relações comerciais, contudo, as elites locais se inspiravam em valores europeus para buscar distinção e consolidar ainda mais o poder político derivado do comércio atlântico. Neste caso, como demonstrado pelo trabalho de Sparks, “negociantes ingleses e a elite de Old Calabar se comunicava em inglês ou numa língua de comércio baseada na língua inglesa e que contava com estrutura gramatical africana”.42 Assim como na costa do Ouro, “em alguns casos os negociantes africanos enviavam seus filhos para Inglaterra para se educarem, freqüentemente depois de encorajados pelos negociantes europeus (…) a aquisição deste conhecimento lhes dava uma confessada superioridade sobre seus compatriotas”.43
Na baía de Benim, tem-se o que foi talvez o único caso em que as relações entre europeus e africanos não foi de imediato caracterizada por hibridismo cultural.44 Naquele região, apesar da decadência da influência portuguesa e da crescente hegemonia comercial e militar de holandeses e ingleses, negociantes baianos faziam valer seus interesses comerciais nas intensas relações diretas entre baía e o Benin. Além do conhecido comércio do altamente apreciado tabaco brasileiro, Robin Law e Stuart Schwartz demonstram que a proeminência baiana resultava também de extenso contrabando de ouro brasileiro.45 No entanto, mesmo depois da tomada de Whydah (cidade costeira até então dominada pelo reino de Hueda), pelo reino do Dahomey (em 1727), o comércio continuou altamente concentrado nas mãos do rei.46 Embora os europeus tenham obtido permissão para se estabelecerem em território africano, seus fortes eram localizados em Whydah, não na costa. Sob vigilância direta de potentados nomeados pelo rei do Dahomey, não tinham a capacidade bélica dos fortes costeiros da costa do Ouro.47 Mesmo aqui, contudo, o quadro mudaria radicalmente com a chegada de ex-escravos que se definiam como brasileiros e de negociantes brasileiros – como o Chachá, por exemplo.48 No século XIX, várias décadas depois do tráfico de escravos, Lagos seria uma espécie de meca das comunidades crioulas, cumprindo papel fundamental na reinvenção da religiosidade afro-brasileira.49
Angola: Africanização dos Mulatos
Invertendo o ponto de vista luso-tropicalista de Oliveira, Heywood afirma que, “por volta da metade do século XVII uma cultura crioula tinha emergido na Angola portuguesa e em Benguela (…) e foi o resultado da africanização da cultura e colonizadores portugueses, o que demonstra que crioulidade foi um processo que afetou não apenas as sociedades africanas”.50 Assim, além da superioridade demográfica africana, seria plasticidade da cultura Mbunda – não da cultura portuguesa, como apregoado no argumento lusotropicalista de Mário António de Oliveira – que teria levado “ao nascimento de uma cultura afro-lusitana” (onde “elementos africanos eram dominantes em muitas áreas”).51
De fato, vários exemplos demonstram a preponderância da cultura Mbunda mesmo em áreas sob controle da administração de Luanda. Em 1698, por exemplo, Gregório Pascoal, escravo do padre católico João Rodrigues da Rocha, declarou que “um vizinho o tinha levado para ver um ritual no qual um bode tinha sido morto em honra de uma pessoa que tinha morrido”. Reconhecendo ter participado da cerimônia ao saborear a carne do bode, Gregório acrescentou que a cerimônia tinha sido dirigida por curandeiros Mbundus. Destes, o principal seria um escravo que pertencia a mais alta autoridade militar de Luanda.52 Catarina Borges, por outro lado, uma mulher livre que tinha nascido em Luanda, foi denunciada a inquisição após se banhar em água quente e ervas para evitar que o espírito de uma neta recém-falecida a atormentasse e a fizesse cair doente. Acusada de pacto com o demônio, Borges alegou que apenas repetia o que “tinha visto seus ancestrais fazerem”.53 Também em 1698, Francisco Pedro, um escravos vivendo em Luanda, consultou um adivinho escravo de um padre de Benguela – depois que alguns de seus pertences desapareceram da sua casa.54
Mesmo escravos que pertenciam aos jesuítas de Luanda seguiam tradições religiosas africanas, como demonstrado pelo caso do escravo barbeiro José Inácio, em 1698. Inácio era “casado com Izabel Inácio, que também pertencia aos jesuítas, e os dois eram nativos de Luanda”. Seus pais tinham também sido escravos dos jesuítas. Quando a esposa de Inácio adoeceu, Inácio consultou um curandeiro Mbundu. Este, por sua vez, “fez alguns cerimônias com as suas mãos e disse que ele sabia que a doença que estava afligindo a esposa de Inácio se chamava Casuto, para o que ele recomendou um tratamento”. Segundo Inácio, o escravo que recomendou o tratamento, que não funcionou, pertencia a Manoel Simões Colaço – na altura, um dos mais ricos e politicamente proeminente negociantes de Luanda em fins do século XVII.55
Na verdade, a prevalência da cultura africana se refletia tanto na população mulata quanto branca: “os muitos mulatos e os poucos brancos que há são já nos costumes tão negros como os mesmos negros”.56 É esta dinâmica – na qual a cultura africana francamente sobrepujava as parcas tentativas portuguesas de criar uma hegemonia cultural – que levou Luiz Felipe de Alencastro a afirmar que Angola teria sido um exato contraponto em relação ao Brasil. Lá, os mulatos teriam falhado na assimilação de traços culturais europeus e não teriam se tornado significativos enquanto grupo social.57 Tese semelhante é esposada por James Sweet ao refutar o argumento de John Thornton sobre a difusão do catolicismo centro-africano para as Américas. Segundo Sweet, se mesmo em Luanda – sede do poder português em Angola – os africanos seguiam preceitos culturais e religiosos africanos, não haveria porque argumentar por um processo de crioulização na África.58 Visão diferente é esposada por Heywood, que argumenta que “apesar do pequeno tamanho da população nascida em Portugal e Brasil e sua descendência fosse bem menor que no Brasil e em Cabo Verde, [em Angola] a mistura cultural e biológica foi significativa”.59
Do ponto de vista estatístico, a população mestiça/mulata angolana resultou do desequilíbrio demográfico da imigração majoritariamente masculina de portugueses nos séculos XVII e XVIII.60 Na falta de mulheres européias, os homens europeus mantinham relações maritais formais ou informais com mulheres africanas – um padrão claramente refletido nos registros de batismo da paróquia dos Remédios, em Luanda. Por exemplo, entre os casais batizando crianças entre 1722 e 1736, o número de homens casados com africanas (95) foi muito maior do que o número de homens europeus casados com mulheres européias (13). Como conseqüência, pelo menos 10% das 800 crianças batizadas naqueles anos eram mestiças.61 Não surpreende, portanto, que, em fins do século XVIII, o percentual de mulatos na população de Benguela girasse em torno de 12%. Em Luanda, tais números eram ainda maiores, variando entre 18 e 26%.62
É evidente, contudo, que a mestiçagem cultural não era corolário da mestiçagem demográfica. Como afirmado por Jill Dias, mulato era “uma categoria sócio-cultural que engloba, convenientemente, uma vasta gama de elementos heterogéneos, desde os descendentes de europeus, nascidos localmente, (tanto brancos como mestiços) aos africanos destribalizados, mais ou menos adaptados à cultura européia”.63 Assim como no Brasil, eram vistos com desconfiança e o termo carregava sentido pejorativo.64 Mas havia uma diferença fundamental. No Brasil, a estigmatização social de indivíduos de origem mestiça (mamelucos e mulatos) teve relação direta com o aumento da população branca.65 Em Angola, contudo, onde os níveis de imigração portuguesa eram baixos, mulatos eram fundamentais para os parcos níveis de influência exercidos pela “metrópole”. Sua influência se fazia sentir em vários níveis da administração local, hierarquia religiosa e aparato militar e judicial.66 Da mesma forma, tinham significativa proeminência nas atividades econômicas e controlavam boa parte do comércio com o interior. Dos moradores mais ricos de Benguela, por exemplo, quarenta porcento foram listados como mulatos num censo oficial de fins do século XVIII.67
Do ponto de vista da cultura, a força motriz era claramente africana. Assim, para contragosto português, a maior parte da administração – e com efeito a maior parte da população – adotava a língua Kimbundo no cotidiano. Apesar de várias tentativas para reforçar o ensino e uso do português, os bandos emitidos pela administração local tinham que ser divulgados na língua africana. Em 1765, por exemplo,o governador de Angola declarou que era “muito indecente que as famílias nobres e brancas conservem nas suas casas e na criação dos seus filhos uma total ignorância da referida língua [portuguesa], privando-os na sua educação do aproveitamento que podião conduzir-lhes a lição dos bons livros, para haverem substituída com a lingua ambunda, só necessária no sertão”.68 Duas décadas mais tarde, demonstrando a continuidade do domínio do Kimbundo, o ouvidor geral de Angola declarou que “entre as coisas que me parecem abuso nesta cidade e conquista é o idioma geral da língua ambunda, devendo ser a portuguesa, e sabe-la mulatos e pretos, que de ordinário nem a entendem […] As mulheres são educadas pelas negras, sem prendas, nem religião, que lhe transmitem o seu idioma, costume e sentimentos, e assim ficam muitas sem falarem nem entenderem o português”.69
Na contramão do domínio da cultura africana, as aulas particulares de inglês e francês eram freqüentadas por apenas três alunos – todos com “pouco progresso”, nas palavras do governador de Angola – e as aulas de geometria tinham apenas sete alunos.70 Os jesuítas cumpriam papel fundamental no ensino dos jovens em Luanda, mas sua expulsão das colônias portuguesas desarticulou o ensino oficial.71 Somente em 1766, no contexto das reformas “modernizadoras” do governador Inocêncio de Souza Coutinho, a aula de geometria seria restabelecida.72 Seria apenas em 1770, contudo, que a administração luandense estabeleceria duas escolas “para todos os meninos pobres e ricos irem aprender”.73 Refletindo a demografia da cidade, os negros e mulatos eram a maioria nas duas escolas: “em cada uma das escolas, andarão até cem rapazes, a maior parte deles mulatos, fuscos, negros e alguns brancos, que são os de menos número”.74
Assim, se a existência de uma comunidade crioula não é o que fazia de Angola um caso específico, a pergunta então é se existe algo singular em relação a dinâmica sócio-cultural angolana. A resposta é sim. Além do já destacado peso da cultura africana na dinâmica crioula, o hibridismo cultural angolano não estava restrito apenas a costa. Segundo Heywood, “a interpenetração de elementos culturais africanos e europeus não estava limitada as áreas principais como Luanda e Benguela, sendo também evidente em regiões africanas subordinadas aos portugueses e algumas regiões africanas vizinhas e independentes”. Assim, “por volta de 1820, as regiões que mais tarde formariam a Angola dos dias atuais tinha sido exposta a cultura que emanava de Luanda e Benguela”.75
Na verdade, desde fins do século XVI, a viabilidade de Luanda enquanto enclave europeu dependia de complexas relações diplomáticas, militares e comerciais com reinos Mbundu do hinterland de Luanda.76 Mesmo depois da vitória portuguesa sobre o reino do Ndongo, em 1672, o arranjo político e institucional que emergiu na região esteve longe de ser inteiramente controlado pelo governo de Luanda – onde supostamente estava concentrada a administração encarregada de representar os interesses portugueses na região. Assim, em lugar de um rígido controle “colonial”, a dinâmica social, política e cultural era caracterizado por extrema fluidez, quando não por direta subjugação portuguesa perante os africanos.77 Neste contexto, os africanos se apropriaram de vários elementos da cultura européia, incluindo a língua portuguesa, usada em grande escala na correspondência entre autoridades africanas e portuguesas.78 Seja em Luanda ou em regiões interioranas, muitos soberanos africanos reconheciam a importância da língua portuguesa, enviando seus súditos para Luanda para serem educados na língua e contratando escribas que os ajudavam na freqüente correspondência com a administração colonial em Luanda e nos presídios.79
Ademais, elementos centrais do aparato jurídico “colonial” derivaram de instituições africanas. No cerne, o aparato jurídico dependia do chamado juízo de Mukano. Neste mecanismo, em primeira instância, os capitães mores tinham autoridade para julgar litígios comerciais e de natureza variada envolvendo africanos que viviam nos limites territoriais sob controle nominal português.80 Em última instância, tal poder cabia aos governadores de Angola. Por exemplo, muitos dos africanos escravizados no interior se valiam do juízo de mucanos para questionar a condição de cativos. Em Luanda, onde as apelações eram julgadas pelos governadores, geralmente após consultas com capitães mores e outras partes envolvidas, os casos assumiam proporções épicas, já que para muitas pessoas era a última chance de se livrar do embarque como escravo para o Brasil. Como juízes principais, tanto capitães mores como governadores (que muitas vezes manipulavam as decisões judiciais em proveito próprio) se valiam de leis locais e portuguesas. Em meados do século XVIII, em virtude do crescente número de ações, o mecanismo foi inteiramente reformado, com o estabelecimentos de instâncias que tinham como objetivo identificar casos de escravização ilegal.81
Francisco Roque Santos
Seria neste ambiente de extrema fluidez que Francisco Roque Santos- um ex-mestre de navios negreiros, branco, provavelmente nascido no Brasil – tentaria mudar os contornos do comércio interno entre Luanda e os reinos Mbundu do hinterland da cidade. Numa carta enviada a Lisboa em 1752, Santos narrou episódios que tinham acontecido treze anos antes. Dizia que uma missão lhe fora delegada pelo governador de Angola Rodrigo Cesar de Menezes: “fazer descobrimento das terras onde residia o potentado Holo, e que o persuadisse a que quisesse ser vassalo de vossa majestade”. Na missiva, suas ações são glorificadas, afirmando ter levado “muitos escravos seus a custa de sua fazenda; e foi onde habitava o Holo, que era entre as terras do rei Ginga e o estado do soba Cassanje, e com efeito chegou a cidade de Luanda no principio do mês de agosto de 1739, com três filhos do dito potentado [Holo], que vinham por embaixadores ao governador daquele reino, trazendo outro negro que os acompanhavam para renderem vassalagem”.82
A narrativa de Santos merece vários reparos. Primeiro, é verdade que o negociante fora recebido com ansiedade ao chegar em Luanda com vários embaixadores do reino do Holo. Contudo, ao invocar o nome do governador de Angola, tentava dar caráter oficial a uma empreitada que parecia não ter amparo na regras que regiam o comércio entre Luanda e o interior. Isto porque o negociante era branco e a ida de de brancos aos sertões tinha repetidamente sido proibida desde meados do século XVII.83 Pior, as ações do negociante propondo o comércio direto entre o Holo e Luanda – contribuíram diretamente para um ataque de forças do reino da Matamba contra o presídio de Mbaka. Na reação, Luanda organizou uma expedição militar punitiva de larga escala – a maior operação de guerra capitaneada no hinterland de Luanda, no século XVIII. Num ato altamente simbólico, Santos foi nomeado comandante do “troço de quatro companhias de infantaria e mais guerra preta na expedição que se fez contra a rainha Ginga”.84
No interior, suas tentativas de contactar o Holo teriam desde o início provocado forte desagrado tanto no jaga de Kasanje quanto no soberano da Matamba. Este não fez segredo da sua opinião, que foi comunicada por escrito ao capitão mor de Mbaka. Nas palavras do capitão mor, “escreveu-me o dito rei que tendo noticias em como Francisco Roque ia caminhando para as terras do dito Holo, mandara os seus macotas atrás dele, lhe fizeram suspender a viagem, o qual tinham posto em cerco nos marcos das terras do dito rei de Casanje, que não sabia se ia por embaixador ou por fugir de algum delito que tinha cometido”.85 Em Luanda, tentando se distanciar da iniciativa do negociante, o governador de Angola determinou a prisão de Santos, além de determinar que o rei da Matamba fosse informado “não ser ordem minha ir atravessar terras alheias”.86
Nos vinte dias em Luanda, os enviados do Holo acenaram com uma proposta que parecia tentadora para os negociantes da cidade.87 Nas palavras dos embaixadores, o estabelecimento de laços diplomáticos permitiria “irem os brancos comerciar nas suas terras”. Na geopolítica daquela região da África central, era uma jogada de mestre. Se bem sucedida, quebraria o monopólio que reinos de Kasanje e Matamba exerciam no comércio de escravos nos sertões. Ao contrário do reino do Holo, estes dois reinos haviam há muito se firmado na geopolítica da África Central. No caso de Kasanje, sua fundação fora fruto da aliança entre portugueses e seus aliados Imbangalas – uma criação que estabeleceria as condições militares e institucionais para a sobrevivência da “colônia” de Angola no século XVII.88 No final daquele século, contudo, Kasanje se firmaria com um contraponto – às vezes ameaçador – ao poder do governo de Luanda.89.O reino da Matamba, por outro lado, fora “refundado” no contexto das guerras entre rainha Njinga e o governo de Luanda. O reino aglutinava elementos cruciais da cultura Mbunda – mais até do que Kasanje.
Como intermediários, os dois reinos cumpriam papel fundamental no comércio interno de escravos. Enquanto Kasanje negociava primordialmente com Luanda, Matamba causava direto prejuízo a Luanda ao também suprir cativos para o norte de Angola. O monopólio que os dois reinos exerciam no comércio com Luanda trazia prejuízo direto ao poder emergente do reino do Holo. Segundo os enviados do reino do Holo, “por quererem estes (reinos de Matamba e Kasanje) só contratar com ele (Holo), dando-lhe por seus escravos uma limitada parte do que os brancos por eles lhes pagavam”.90 Antes mesmo dos contatos intermediados por Santos, já por três vezes o Holo tinha tentado estabelecer contato direto com o governo de Luanda. Todas as tentativas uma delas trazendo sessenta escravos como oferenda para o governo de Luanda foram abortadas por Matamba, o que levou a um quadro de guerra endêmica com Matamba e Kasanje.91
Em Luanda, a proposta dos enviados do Holo foi recebida com cautela. Boas relações com Kasanje e Matamba eram vitais para os interesses geopolíticos de Luanda. Destas dependiam não só boa parte dos suprimentos de escravos embarcados por Luanda mas também o quadro de relativa paz que permitia que o governo de Luanda se engajasse em operações militares no sul de Angola, que por sua vez levariam a abertura do tráfico de escravos em Benguela.92 Em Lisboa, a notícia foi vista com cautela ainda maior, com o procurador da coroa ponderando que “para abrirmos comércio com o soba Holo poderá produzir não só uma guerra sem civilidade mas também a desobediência do Ginga e Cassanje, com prejuízo dos negócios de resgate [de escravos], além do que a utilidade do comércio com dito Holo é em comprarem cabeças [escravos] por preços mais moderados, o que será no princípio e depois as venderão pelo mesmo [preço] que se compra nas terras dos outros sobas, sendo não só igual, mas antes maior utilidade em se conservar o que temos, do que arriscá-lo pela contingência de maior conveniência”.93
Mas quem seria Francisco Roque Santos? Primeiro, teria iniciado sua carreira no Brasil. Dizia que tinha sido “provido pelo Conde de Sabugoza, Vice-Rei da , no posto de Capitão de Mar e Guerra ad honorem, que exercitou doze anos”. Depois, foi descrito como mestre de navios que faziam a rota do tráfico com Angola. Teria fincado raízes em Luanda na década de 1720. A razão seria a importância estratégica da cidade no vertiginoso aumento da demanda brasileira por mão de obra escrava, que causou crescimento no envio de escravos para o Brasil – a maior parte deles embarcados através de Luanda. Já instalado na cidade, viu-se compelido a seguir para o interior para fugir do quase monopólio que os grandes negociantes exerciam sobre as redes de comércio de escravos no hinterland de Luanda. Passou a fazer negócios na Kissama, região “inexplorada” ao sul de Luanda e fora da órbita de influência do governo de Luanda, onde “esteve concubinado tempos com uma mocamba do dito quissama”.94
No final, apesar da custosa guerra com o reino da Matamba, a iniciativa de Santos redundou em fracasso. Somente em 1765, com a anuência do soberano da Matamba, Luanda conseguiria estabelecer contatos comerciais e diplomáticos diretos com o Holo.95 Quanto ao aventureiro, seria nomeado capitão mor do presídio interiano de Kakonda, prêmio precioso porque aquela região cumpria papel central no fornecimento de cativos para Benguela – então se afirmando como segundo porto mais importante do tráfico angolano. Santos permaneceria pelo menos três anos em Kakonda.96 Terminaria preso em Luanda, contudo, oficialmente culpado de fazer negócio (escravizar africanos) durante a guerra contra Matamba, mas, na verdade, vítima da animosidade dos negociantes de Luanda, que o culpavam pelo desastre comercial causado pela guerra contra a Matamba.97
Conclusão
No caso angolano, a mestiçagem cultural tinha características ímpares. Independia da cor da pele e, ao contrário das outras regiões africanas, se interiorizaria para além de Luanda, também englobando o hinterland daquela cidade. Na origem, este processo de interiorização esteve intimamente relacionado com o ciclo de operações militares que, na primeira metade do século XVII, levou a consolidação da “colônia” de Angola como fornecedora preferencial de mão de obra cativa para o Brasil. Na seqüência das guerras angolanas, as relações sociais e culturais nas regiões entre Luanda e Mpungo Ndongo – o presídio fundado na capital do reino do Ndongo, em 1672 – tinham a fluidez como característica principal. Mesmo em Luanda, a despeito dos protestos oficiais, era a cultura africana que dava o tom. Apesar do uso do português como uma das línguas francas do comércio e correspondência diplomática, o Kimbundu era a língua hegemônica. Devido o tráfico de escravos, as relações comerciais de Angola eram mais intensas com o Brasil do que com Portugal. Muitos dos administradores, soldados e negociantes que operavam em Angola tinham a base como origem. Muitas vezes, como o caso de Francisco Roque dos Santos demonstra, tinham como objetivo abrir rotas de comércio alternativas e fora do controle direto dos tradicionais negociantes de Luanda. Para tanto, se valiam de estratégias como casamento, ocupação de cargos na administração colonial e alianças políticas com soberanos africanos.
Fonte: Historia Viva