Por: Luã Ferreira Leal
Santos, Ana Katia Alves; Infância afrodescendente: epistemologia crítica no ensino fundamental. Salvador: Editora EDUFBA, 2006.
Quais as formas de abordar a África como ponto de origem de determinadas manifestações religiosas e culturais no Brasil? A partir dessa indagação, iniciarei esta análise do livro Infância afrodescendente: epistemologia crítica no ensino fundamental, resultado da dissertação de mestrado defendida por Ana Katia Alves dos Santos em 2005 no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFBA.
Infância afrodescendente valoriza uma virada epistemológica na relação dos professores com a experiência dos alunos. No prefácio de Dante Augusto Galeffi, é apresentado o cerne do debate, voltado para intervenção na esfera pública, da importância da “compreensão e valorização do aprendizado multifacetado em detrimento da razão instrumental e monológica”. Essa virada epistemológica pretende reduzir a distância entre o cotidiano dos alunos e os conteúdos apresentados em sala de aula pelos educadores.
Além da introdução e da conclusão, o livro é dividido em três capítulos. O primeiro, intitulado “O que é isto – a infância?”, é voltado para discutir as concepções naturais sobre a infância, assim como para apresentar a proposta de Philippe Ariès acerca da historicidade do tratamento dispensado pelos adultos em relação às crianças, ou seja, a infância como construção social. O segundo capítulo, “Epistemologia, educação e infância afrodescendente no horizonte da contemporaneidade”, trata das alternativas à hegemonia da cognição como capacidade mais valorizada no sistema de ensino. A autora discute a relevância de outras vias de produção de conhecimento baseadas na experiência dos alunos, valorizando assim aspectos étnicos, políticos, econômicos e sociais presentes no cotidiano dos alunos.
Em “História e cientificidade do ensino fundamental: há lugar para a diferença na escola que fazemos?”, terceiro capítulo do livro Infância afrodescendente, a autora apresenta em maior grau o aspecto militante de seu trabalho. Sua análise, baseada na defesa da inserção da experiência dos sujeitos que ensinam e aprendem no âmbito escolar, critica o “processo perverso e excludente” da educação brasileira. A visão europeia e elitizada surge no discurso da autora como barreira à defesa da cultura afrodescendente na Bahia. Dessa forma, a preponderância desse método de ensino promoveu a exclusão da cultura local desde o século XVI no Brasil, devido à presença dos jesuítas na condição de promotores de fundamentos pedagógicos.
Devido ao último aspecto destacado acima, considero necessário situar dois pontos negativos do livro: a apresentação dos métodos de pesquisa e o impreciso olhar historicizante sobre os processos de transmissão de conhecimento. O primeiro ponto refere-se à supervalorização do debate sobre a separação sujeito/objeto, influenciada pelas proposições de Heidegger sobre experiência autêntica, a qual deve ser considerada antes de ser transformada em abstração. A apresentação excessivamente longa dos pressupostos heideggerianos em detrimento da análise dos caminhos metodológicos escolhidos durante a pesquisa torna o livro mais semelhante a um ensaio do que a um trabalho acadêmico produzido para comprovação de hipóteses.
O segundo ponto diz respeito a um problema encontrado em todo o livro, sobretudo nos capítulos voltados para a discussão da situação de exclusão de elementos da cultura afro-brasileira no ensino fundamental baiano. As generalizações sobre a condição do Brasil no “modelo agrário/exportador, dependente e servil da Europa” não permitem ao leitor identificar os processos de consolidação dos elementos de “fortalecimento do império da cultura moderno-colonialista/ branco-ocidental”, os quais levariam ao ajustamento das crianças afrodescendentes ao universo da racionalidade branco-ocidental. Além de apresentar a cultura moderno-capitalista como algo homogêneo, um bloco monolítico, outro equívoco é a ausência de uma reflexão sobre os processos que resultaram na predominância de uma perspectiva que não valoriza o cotidiano das crianças afrodescendentes.
Baseado nas propostas teóricas de Paulo Freire, o livro em sua parte final evidencia a defesa da escola solidária. Esse modelo de escola prioriza a importância da inserção da criança a um contexto, diferentemente da escola que “conserva a racionalidade moderna, de fundamentos epistemológicos metafísicos, branco-ocidental.” A escola solidária está interessada na realidade dos educandos e seus fundamentos são dialogicidade, alteridade, acolhimento, diferença, diversidade, abertura e curiosidade.
Em sua defesa da escola plural, a autora aborda a reelaboração da identidade a partir da tradição mantida na vida em comunidade pela transmissão entre gerações de dança, cantos e mitos. As crianças reelaboram a cultura de matriz africana, principalmente, nos terreiros de Candomblé. A autora, contudo, não apresenta ao leitor as formas pelas quais ocorre essa reinvenção da “tradição”. No candomblé, a narração mítica sobre a construção de ser humano está centrada na figura dos orixás. O Anexo A, intitulado “mitologia afro-brasileira”, apresenta a teogonia do candomblé, possibilitando assim que sejam identificadas as características dos orixás apresentados no decorrer do livro.
No terceiro capítulo, é apresentada a transcrição da conversa realizada dentro de uma das escolas analisadas com os filhos de santo João Roque, uma criança de 10 anos, e sua mãe. A pesquisadora ao comentar uma das respostas dos seus entrevistados indica que o culto aos orixás “vem de uma tradição africana que é nossa, mas que a maioria das pessoas prefere negar.” João Roque, em outro momento da entrevista, afirma que “às vezes a professora fala da África, mas não toca no Candomblé”.
Em seu posicionamento contra a “negação da afrodescendência”, a qual promoveria apagamento étnico no ensino, a autora entende as práticas religiosas do candomblé como elemento africano autêntico presente no cotidiano de afro-brasileiros. Salvador, terminal do tráfico de escravos, seria uma síntese da resistência e as religiões afro-brasileiras constituiriam um lugar de memória dos descendentes que sofreram “trágica aventura” durante a diáspora.
Apesar de mencionar as denominações dos grupos que foram forjadas no tráfego de escravos como Minas, Jejes, Nagôs, Tapas, Hauças, Calabar e Galinhas, a autora aponta a existência de uma matriz africana comum, capaz de estimular a elaboração de uma identidade afro-brasileira, mas não historiciza o processo de sua criação. Por tratar de uma questão complexa – as relações entre docentes e discentes na abordagem em sala de aula da cultura afro-brasileira –, o livro deveria problematizar a criação dessa identidade.
Fonte: Áfria em Questão