Sozinha enfrentei tudo isso. E sobrevivo.

Quando penso em tudo que precisei enfrentar, sozinha, eu lembro de tantas outras mulheres trans, que também sozinhas precisaram lutar pela própria existência, sem ajuda de ninguém.

Texto de Daniela Andrade, do Blogueiras Feministas 

Percebi muito cedo, logo na infância, que não teria o apoio da minha família; mas agressões, afinal, eu só podia ser uma criminosa ou pecadora infernal por não ser o fulano esperado, condicionado e imposto, mas a fulana.

Aprendi a conviver bastante cedo com a solidão, quando mais precisava na minha adolescência desabafar como eu me sentia e tudo que estava passando, encontrava apenas o travesseiro. No bairro onde eu morava, não havia qualquer pessoa que eu supusesse que estava passando por tudo aquilo que eu passava, sendo açoitada cotidianamente dentro de casa, na rua e na escola. Tampouco havia a internet providencial que hoje em dia tem ajudado tantas pessoas na mesma situação que eu me encontrava.

Tudo que eu queria era colocar para fora o meu desespero, mas não havia como. Era preciso aguentá-lo e engoli-lo, em seco. Tantas foram as noites chorando baixo para que ninguém ouvisse, desejando que aquilo tudo acabasse.

Como desejei a morte, que sempre me pareceu uma amiga muito íntima que às vezes vinha ao meu ouvido, no meio da noite vazia e escura, depois de tanto chorar, sussurrar ao meu ouvido: Acalme-se, logo eu venho me juntar a você.

Eu não conseguia controlar tudo aquilo que eu sentia, a forma como eu reagia às manifestações do mundo à minha existência e aos meus comportamentos, eu não conseguia ser aquela pessoa que impunham que era meu papel e função: homem. E como fui agredida, violentada e rechaçada de todas as formas por conta disso: sozinha.

Sozinha enfrentei tudo isso. Mais tarde, sendo apontada como um homem gay, ou melhor, uma bicha afetada, por absolutamente toda a sociedade, encontrei nos espaços gays a mesma solidão que já era minha companheira.

Eu não servia para eles, que me apontavam como feminina demais. O que ouvia sempre é: não curto afeminados, se eu os curtisse, ficaria logo com mulher e seria hétero.

Via o tempo todo amigos meus gays lidos como masculinos serem cantados, xavecados, endeusados, paquerados, pedidos em namoro por outros meninos. E a mim sobrava o vazio. Aprendi nesses espaços que ser quem eu era, era algo errado, repudiado, rechaçado. Ouvia também que eu havia escolhido “desmunhecar”, que eu podia ser gay mas “para quê querer ser mulher”, que tudo bem ser gay, mas “querer ser travesti já era demais”.

Aprendi que era preciso sempre sorrir e fingir estar sempre bem, meus problemas eram sumariamente ignorados e quando eu falava estar em depressão recebia: “Vamos pra balada que você se anima”. Mas eu sabia que seria novamente uma noite que eu sairia muito triste de casa e voltaria ainda mais destruída, pois eu novamente redescobriria que eu não servia para eles. E se aproximavam, eram para falar de festividades e coisas amenas. Mais uma noite que voltava vazia, deitava e perguntava para algum ser misterioso, possivelmente para mim mesma: O que tenho? Afinal de onde brota tanta solidão? Por que esse vazio?

Ouvia o eco das minhas próprias perguntas como resposta.

Mais tarde, quando conheci uma amiga transexual que me contou toda sua história, quando me estalou que na verdade aquela história que ela contava também era a minha, foi que brotou em mim um laivo de esperança e de autorreconhecimento: eu não era um deles.

Foi como permitir que um esganado respirasse mais um pouco. Aquilo que contaram e impuseram para mim a vida inteira, estava agora consumado não passar de uma enorme mentira. E como me senti ferida na alma por tudo aquilo, ao menos aqueles meus amigos gays tinham uma identidade que os identificasse, assumida e reconhecida por eles, eu àquela altura não. Sentia-me o tempo todo uma estranha no ninho tentando me identificar como pertencente a um grupo que eu sabia que podia estar ali, mas apenas como agregada. Agora, pelo menos, eu sabia o que há muito tempo já sabia, mas que não podia explicar.

E como mulher trans, logo percebi que na verdade não passava de fetiche para os homens. E quantas vezes eu os procurasse para sentir um pouco menos solitárias, tantas vezes eram as que eu seria tratada apenas como um corpo que se move e os serve sexualmente.

Quantas e quantas vezes ouvi palavras elogiosas que logo se mostravam como mero enfeite a fim de que eles alcançassem seus intentos sexuais. Eu precisava entender, conforme o que me diziam, que eles não poderiam assumir uma relação comigo às claras, afinal, como a sociedade iria tratá-los. As mulheres trans não passam de estepe, válvulas de escape para que os homens cisgêneros se divirtam ou extravazem seus fluídos, mas o namoro e a relação assumida para toda a sociedade, nesse caso é apenas com a mulher cis.

E todas as palavras de afeto e amor, mais tarde se mostravam como evasivas mentiras assim que eram pressionados para que vivêssemos uma vida que não fosse dentro do quarto do motel, entre quatro paredes ou no anonimato do escuro das ruas, dos becos, das esquinas.

E novamente, mais uma vez, era a solidão que me dizia: Desista, esse é seu destino, ser sozinha. Como sempre foi, e como sempre você esteve. Mas teimosa e iludida ao ver que tantas pessoas tinham o direito à companhia verdadeira, tentava mais uma vez, e mais uma vez eu acertava que era preciso me recolher.

E quando recolhida, atenta a mim mesma, dava e continuo a dar de cara com meu corpo. Esse corpo com o qual me encontro o tempo todo, a todo tempo. Esse corpo que carrego repleto de minas capazes de explodir auto-estima, afinal, sou humana, de carne e osso; não tenho como evitar a tristeza, antes viéssemos com um botão, em que apertando passássemos a viver como os livros de auto-ajuda nos indicam.

Esse corpo que preciso carregar, sem jeito, sem saída ou alternativa, de fato nunca foi meu. Há nele partes cancerosas, objetos mortos, pelos quais preciso constantemente permanecer enlutada. E essas partes cancerosas tem dia após dia criado braços e tentáculos que me impedem de respirar, e se eu rearranjo forças que nunca tive para cortá-los, renascem como hidra e onde havia um, aparecem sete.

Olho no espelho e vejo uma forma amorfa que se pretende humana, olho no espelho e meu câncer grita: Iremos juntos até o fim, até que eu te destrua como um bólide.

Foi esse câncer que me ensinou a não viver, mas sobreviver; e mesmo quando me calo ou se grito, sinto sua mão pesada por dentro tentando me destruir. E então descubro, não estou sozinha, tenho o meu câncer como companhia, sempre me dizendo que está por perto, atrás de mim pronto para pular e me estrangular quando tiro minha roupa. Quando penso que farei amor, ledo engano – esse corpo não é o meu, não é com ele que eu transo, e quando ele vai, não vou junto. Eu me retraio e sei que não é com ele com o qual eu gozo, por que não gozo. Ele regozija-se de mim e grita sádico: estou aqui para não te dar sossego, vista-se e pare, achava que estaria em companhia de alguém que não eu? Acostume-se com aquela solidão que tão bem te acomodou por toda a vida.

E minha alma se esvai, sinto-me cansada, é o que me resta: esperar que a morte chegue, de um jeito ou de outro, cansada de tanto esperar.

Autora

Daniela Andrade é uma mulher transexual que luta ansiosamente por um presente e um futuro mais digno às todas as pessoas que ousaram identificar-se tal e qual o são, independente daquilo que a sociedade sacramentou como certo e errado. Não acredito no certo e o errado, há muito mais cores entre o cinza e o branco do que pode supor toda a limitação hétero-cis-normatizante que a sociedade engendrou. Escreve em seu blog pessoal: Alegria Falhada. Administra a página:Transexualismo da Depressão.

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