Travessias da cor: África e identidade negra no Ceará

Por:  Melquíades Júnior
Andy discorda do termo “moreno” que tentam lhe adjetivar no Ceará e insiste que a “suavização da cor” reflete a condição social do próprio negro brasileiro. Imigrantes africanos ganham voz nesta série Travessias da Cor
 

O Diário inicia série especial sobre as travessias dos imigrantes africanos e a construção social da cor

São diversas as travessias – a primeira pelo Oceano Atlântico – enfrentadas pelos africanos no Ceará, com mais de três mil imigrantes. A presença discreta é rompida nas calçadas movimentadas e nos corredores das universidades. Ou na morte de um imigrante em Fortaleza e o recente protesto de estudantes da Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção. Agora em associações locais sólidas, os africanos no Ceará buscam maneiras de reafirmar a própria identidade e tratar com os brasileiros, francamente, um quase-tabu num país miscigenado: a discriminação da cor.

Atravessamos, por nossa vez, o caminho do diálogo franco com a comunidade africana. Ou comunidades, bem no plural, sendo a desconstrução da ideia de África homogênea um dos maiores desafios enfrentados por quem tenta mostrar suas próprias singularidades. As histórias retratam uma dor imposta pelo preconceito. Uma dor da cor. Mas trazem, no mesmo sangue, a superação em forma de resistência para além dos estereótipos.

Das dificuldades financeiras de muitos, da falta de comida aos fins de semana em que as universidades fecham – e portanto, seus refeitórios, ao debate aberto com os brasileiros sobre a condição dos próprios negros do País. Após a travessia atlântica, o africano leva o cearense ao encontro dele mesmo e da construção social de sua cor.

Parece cearense

Somente quando saiu de Cabo Verde, na África, para morar no Ceará, o jovem Andy Monroy percebeu que era negro. Antes, simplesmente não precisava ser. Mas ouviu dos brasileiros que passou a conhecer que, calado, “até parece um cearense”. “Hoje, com menos sotaque, devo parecer até mesmo falando”.

Numa noite, quando chegava à sua casa, Andy viu o semblante de pânico de uma senhora que caminhava à sua frente. Acelerou o passo quando viu o rapaz. Rapidamente, a mulher foi avistada pelo porteiro do prédio, que deu abertura. Mas o rapaz entrou no mesmo lugar. Pior, no mesmo elevador. “Ela estava com muito medo”.

Quando percebeu que olhar para ele era o último gesto de algumas pessoas antes de atravessarem a rua para a outra calçada, ou levantarem o vidro do carro, aumentou a sua angústia. Num estágio em empresa de publicidade, sugeriram que cortasse o cabelo. Além da cor, o cabelo muito volumoso, crespo, encaracolado, deixava mais parecido com o pessoal do outro

“Os outros (apontando para os de mesma cor) estão com o cabelos cortados, mais decentes”, ouviu do gerente. Ao saber da origem dos outros “morenos”, o recém-chegado africano passou a identificar dois lados da cidade: um que tinha Papicu, Aldeota, Benfica e Praia de Iracema. O que não fosse isso, era o outro lado, onde, por acaso, passou a morar, num segundo momento, em Fortaleza. Desse lado, o outro, havia mais pessoas de sua cor, cabelo, e menos olhares e medos.

Hoje publicitário, graduado pela Universidade Federal do Ceará (UFC), casado e com sete anos de Fortaleza, Andy não tem dúvida: “Nunca imaginei que fosse encontrar racismo no Ceará. Aqui chega a ser pior, porque não admitem que o negro sempre existiu neste lugar. Se eu digo que sou negro, me interrompem como quem corrige de um insulto. ‘Não, você não é negro, é moreno'”.

Constrangimento

Delce, uma jovem estudante de Guiné-Bissau, estudante da Unilab, passou por um recente constrangimento ao fazer compras na feira livre em Fortaleza. Escolheu e pagou por uma blusa, mas quando ia embora, foi abordada por policiais que acusaram-na de ter roubado “alguma coisa”, suspeita desfeita ao abrir a mochila e mostrar não haver nada além da roupa que havia comprado. “Não roubei nada”, diz para si mesma, sem nunca ter pensado que um dia precisaria se dizer isso. “Os meus pais não sabem que aqui a gente é discriminada, como se fizéssemos uma coisa errada. Não se pensa que existe racismo no Brasil ou no Ceará, porque é tudo misturado. Então, não deveria ter. Se meus pais soubessem, iriam sofrer. Eu, ainda mais”.

“Os africanos que aqui estão chegando rompem as fronteiras raciais delicadamente construídas no Ceará”, afirma o sociólogo Pedro Mendes, da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Ele tem dedicado os últimos anos a estudar a relação socioespacial configurada com os africanos no Estado e, dessa forma, a condição do negro local.

No ano de 1813, de acordo com levantamento feito por capitães-mores do Ceará, havia nada menos que 65,93% de negros e mulatos. Em 1872, o percentual de não brancos (à época definidos negros, mulatos, caboclos e pardos) era de 62,74%. Com o passar do tempo, estudos passaram a renunciar a existência da população de cor negra, apontando para a construção de um “Ceará caboclo”, formado por brancos e índios.

Fotos: OTOS: FABIANE DE PAULA

Fonte: Diário do Noredeste

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