A estabilidade de democracia e uma economia em desenvolvimento atraem todos os anos centenas de africanos em busca de vida melhor
por Melquíades Júnior
Unidos pelo passado, Brasil e África mantêm afinidades no presente. Para muitos africanos, elas se comprovam nos tons de pele e no sorriso fácil dos brasileiros. As ideias projetadas sobre o Brasil e a recente integração educacional alimentam o sonho, especialmente nos países africanos de língua portuguesa: Guiné-Bissau, Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. Chegando, a história geralmente não é a mesma. Mas quando as carências no país de origem são maiores que as encontradas aqui, real e ideal pouco variam, e as associações criadas pelos imigrantes em Fortaleza têm feito a diferença na realização do que é possível. Na vida e na morte.
O aumento nas relações Brasil-África teve uma data: meados de 2003, com a aprovação da Lei Nº 10.639, que torna obrigatório o ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira e Africana nas instituições públicas e particulares de educação. Quase 11 anos depois, o seu cumprimento ainda é um dos grandes desafios do governo federal, mas foi o primeiro passo de uma reavaliação histórica de aproximação do País com aquele continente.
Entre 2002 e 2008, houve um aumento de 17 para 32 unidades de representações africanas em Brasília, sejam consulados ou embaixadas. “Uma das vertentes do Brasil enquanto país em desenvolvimento é a sua projeção internacional, na forma de aproximação com o continente africano”, afirma Lucas Almeida, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
Fluxo migratório
A instalação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção, é outro importante fator para o aumento da migração africana para o Brasil. De 2008 para 2012 aumentou quase dez vezes o fluxo de africanos pelo Aeroporto Internacional Pinto Martins, em Fortaleza.
Assim chegou Gilmar Canós, um dos mais de 700 imigrantes de Guiné-Bissau que moram no Ceará. Após aprovação no teste realizado em Bissau, capital do País, o rapaz, de 20 anos, arrumou a mala. Mas já havia arrumado anos antes, quando decidiu que iria embora estudar. Não tinha muito o que colocar na mochila, não tem tanta coisa.
Deixa de ser uma boca para se alimentar em casa de cinco filhos criados pela mãe feirante para virar preocupação e saudade por estar longe. “A gente já falava sobre ir embora. Assim dói menos”, diz Gilmar, que em Bissau ajudava nas finanças em casa como servente de obras.
Antes de vir, Gilmar conhecia o Brasil pela televisão – os principais canais abertos daqui são vistos lá. As reportagens que se reproduzem sobre a miséria econômica lá são, com mesmo efeito, o que se tem sobre a violência daqui. “Meus pais ficaram com medo, porque aqui tem muita violência, muita coisa que a gente não vê lá”, explica Dote Biague, cabo-verdiana de 21 anos.
O sonho brasileiro
De todos os sonhos projetados pelos africanos sobre o Brasil, em nenhum deles estava a discriminação racial. “Como pode, um país tão misturado, tem tantos negros. Não devia ter isso aqui. Nos Estados Unidos, ou na Rússia, a gente até entende, mas no Brasil”, questiona a cabo-verdiana Jezabel do Nascimento.
A estabilidade econômica e a política internacional brasileira são vistas como grandes atrativos, assim como a língua oficial comum às cinco nações africanas que também compõem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Ainda que muitas vezes resumidos a uma cor e ao seu continente de origem, centenas de cabo-verdianos, bissau-guineenses, moçambicanos, angolanos e são tomeenses tentam manter-se proprietários de suas histórias. Estudam, trabalham, tentam se integrar. Namoram, casam com brasileiros e brasileiras, ou mesmo africanos, contribuem para os espaços de discussão especialmente sobre herança histórica do negro no Brasil. O africano veio e pôs um espelho convidando o brasileiro a se ver.
Andy Monroy, citado no início desta série, tem convidado amigos cearenses a repensar em que contexto a África se insere na origem de suas vidas.
Ainda que em cotidianos expostos pelos traços de cor em diversas situações urbanas, os africanos seguem uma vida discreta. Suas presenças são anunciadas em situações nas quais precisam reafirmar justamente a presença, seja por ameaças de deportação por falta de documentos que comprovem a quitação nas instituições de estudos, ou, mais recentemente, quando um sonho é interrompido, como o de Lester Raul Indeque, morto em janeiro, e Ciserina Santos, que faleceu no último dia 24 de abril, de Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Lester tinha 31 anos, era natural de Guiné-Bissau e havia recentemente concluído o curso de Ciências Contábeis em Fortaleza, onde morava com a esposa, também africana, e um filho brasileiro, de três anos. Ciserina, 29, recém-graduada em Tecnologia da Informação, estava grávida de quatro meses. Assim como no caso de Lester, a comunidade africana no Ceará está reunida em campanha por doações para custear o translado do corpo para Guiné-Bissau. “Eram soldados, como todos nós somos”, afirma Domingos Nunes, presidente da Associação de Estudantes de Guiné-Bissau em Fortaleza.
Fonte: Diário do Nordeste