Um bispo negro toma a frente e proclama: a homossexualidade é um dom de Deus

Um bispo negro, no sertão do Nordeste, com uma trajetória entre os pobres do Rio, Minas e São Paulo, nomeado em 2014 pelo Papa Francisco, chacoalhou a Igreja Católica, abriu os portões de ferro da falsidade e do preconceito e proclamou, profeticamente: a homossexualidade é um dom de Deus. Foi dom Antônio Carlos Cruz Santos, religioso da congregação dos Missionários do Sagrado Coração de Jesus, bispo de Caicó, no sertão do Rio Grande do Norte. Ele afirmou que o preconceito contra os homossexuais está em linha direta com o preconceito contra os negros e a escravidão e acusou os conservadores católicos de falta de misericórdia.

Do Outras Palavras

Numa homilia no 17º Domingo do Tempo Comum (30 de julho), ainda no contexto da festa de Sant’Ana (mãe de Maria), comemorada em 26 de julho, ele abordou o tema da homossexualidade a partir de um olhar profundamente cristão: “Pensemos, por exemplo: na perspectiva da fé, quando a gente olha para a homossexualidade a gente não pode dizer que é opção. Pois opção é alguma coisa que livremente você escolhe; e orientação ninguém escolhe – um dia a pessoa descobre com esta ou aquela orientação. Escolha será a maneira como você vai viver a sua orientação, se de uma forma digna ética ou de uma forma promíscua; mas promiscuidade pode-se viver em qualquer uma das orientações que se tem. Então, já que não é escolha, já que não há opção, já que a Organização Mundial da Saúde desde a década de 90 não considera mais como doença, na perspectiva da fé nós só temos uma resposta: se não há escolha e não é doença, na perspectiva da fé só pode ser um dom. É dado por Deus. Mas talvez os nossos preconceitos não consigam o dom de Deus.”

Veja homilia de dom Antônio Carlos. No final, ela está transcrita integralmente:

Dom Antônio Carlos tem uma trajetória que o liga à trajetória mais original da Igreja no Brasil, aquela que formou uma geração de bispos-profetas como Dom Hélder Câmara, dom Paulo Evaristo Arns, com Pedro Casaldáliga e tantos outros. Sua nomeação pelo Papa Francisco para bispo de Caicó foi uma surpresa. Ele havia sido vigário em paróquias inseridas em regiões pobres, como  a Cidade de Deus, no Rio, Belford Roxo, na Baixada Fluminense, e Contagem, em Minas Gerais.  Era um padre “com cheiro de ovelhas”, na definição do Papa Francisco para a escolha dos bispos de seu pontificado.

Em sua homilia, ele estabeleceu uma linha direta entre o preconceito aos homossexuais e aos negros: “Assim como o preconceito com o negro; não se percebia que o negro era gente; dizia-se que o negro não tinha alma”. A negação da humanidades das pessoas homoafetivas está no mesmo lugar da negação da humanidade aos negros durante a escravidão –e que perdura em segmentos da sociedade até hoje. O que propôs dom Antônio Carlos: “assim como fomos capazes de dar um salto na sabedoria do Evangelho e vencer a escravidão, não estaria na hora de a gente dar um salto na perspectiva da fé e superar preconceitos contra os nossos irmãos homoafetivos?”

O bispo de Caicó fez questão de referenciar sua posição nos gestos do Papa. Ele relatou um encontro muito especial de Francisco em 2015: “No último sábado de 2015 numa audiência privada, que não foi revelada por Francisco, mas foi revelada pela pessoa que foi a esta audiência privada, o Papa recebeu em sua casa o transexual  Diego Neria Lejarraga e sua namorada [Macarena]. Como se deu esse encontro? O Papa recebeu uma carta desse transexual espanhol falando da dor que ele tinha, do preconceito que ele sofria na sua comunidade católica da Europa. Fruto disso, o Papa telefonou para ele e marcou essa audiência. E depois da audiência esse rapaz deu uma entrevista a um jornal espanhol na qual ele dizia que na sua comunidade esse transexual tinha sido chamado pelo padre e pelo povo como ‘filha do diabo’. Sensibilizado, Francisco tentou acolher aquele que não foi acolhido pelo irmão na Igreja.” (se quiser saber mais sobre esse encontro, leia aqui)

Numa postura que fugiu à diplomacia usual na hierarquia da Igreja, dom Antônio Carlos acusou os opositores de Francisco de menosprezarem a misericórdia: “Papa Francisco é acusado por alguns dentro da Igreja que querem ser mais romanos do que o Papa, de que ele quer  baratear a doutrina católica baratear a doutrina católica, dizem que nós estamos vendendo, que ele está vendendo a doutrina católica por coisa barata. Na verdade, o que o Papa Francisco está querendo é que é o ponto de partida da doutrina católica seja a misericórdia; e a misericórdia, gente, não é baratear: a misericórdia é muito cara. Cristo pagou um preço caro pela misericórdia. A misericórdia é um preço caro que a gente paga por ser fiel ao Mestre Jesus.”

A reação de segmentos católicos conservadores foi a usual: acusação de “blasfêmia”, de condescendência com um “pecado grave” (a homossexualidade, na visão desses segmentos), organização de abaixo-assinados endereçados ao núncio apostólico e ao Vaticano. Houve ofensas de todo tipo e manifestações de ódio ao bispo na internet e em programas de rádio e TV de conservadores. No domingo (6 de agosto), diante das pressões, dom Antônio Carlos divulgou uma “nota de esclarecimento” na qual reafirma os aspectos essenciais de sua homilia.

[Mauro Lopes]

Nesta semana, na quarta feira do dia de Sant’Ana [26 de julho], no programa do Marcos Dantas, na 95 [uma rádio de Caicó] houve uma entrevista que me provocou. Marcos Dantas entrevistou o professor Wether dos Santos Filho sobre sua dissertação de mestrado. Sabe qual era a dissertação de mestrado do professor? Sobre a prevalência e fatores associados à ideação suicida entre travestis e transexuais.

A tese que o professor levantava era a partir dos números de suicídios entre travestis e transexuais. Ao ouvir essa reportagem tive a oportunidade de conversar com o professor e fiquei pensando em tantos irmãos e irmãs com orientação homoafetiva que se sentem incompreendidos e não amados por nós, que somos Igreja, pelas suas famílias, pela sua sociedade e até por si mesmos, como acontecia na época da escravidão.

Fiquei lembrando nesses 25 anos de ministério de tantas histórias e sofrimentos de irmãos e irmãs com orientação afetiva que vieram partilhar conosco carregando sua dor e sobretudo a dor de não se sentir acolhido e amado.

Lembro-me de um fato, num determinado lugar que eu trabalhei; certa vez uma mãe veio me procurar porque seu filho jovem tinha revelado para ela a sua orientação homoafetiva. Esta mulher ocupava naquela cidade um lugar de certo prestígio e ela não dava conta de digerir esta orientação do seu filho; como mãe que iria amar, mas pelo peso da cultura que ela carregava, pelo peso da sociedade que ela carregava não dava conta de aceitar. Ela entendia a orientação seu filho como uma forma de exposição negativa dela, que sentia no lugar de certo conforto e acolhimento na sociedade. Tentei fazer com esta mãe um caminho, mas não é fácil fazer um caminho quando estamos diante dessas questões; cheguei a propor um acompanhamento o rapaz, que nunca me procurou.

Pouco tempo depois esta mulher teve um câncer. Possivelmente aquele câncer era a somatização daquilo que ela não conseguia digerir no seu filho; e esse câncer foi capaz de leva-la a óbito. Quando eu fui fazer as exéquias, o filho estava ao meu lado e o filho sabia dessa conversa, porque com certeza mãe tinha dito para ele. E a única coisa que aquele filho fez, chorando, ao olhar para mim, foi dizer: “eu sei que eu sou o culpado da morte de minha mãe”. Infelizmente não me era possível naquele momento eu dizer outra coisa, para não revelar aquilo que era um direito dele, algo que eu escutei no num outro momento mais privado. Cheguei a dizer “me procure”; ele nunca procurou, mas fiquei pensando na dor que essa pessoa carrega de levar essa culpabilidade que não tem. A culpa não era da sua orientação; a culpa era da sua mãe não ter dado conta de vencer os preconceitos.

Todos vocês sabem que um tema que me toca muito é o tema do suicídio no nosso Seridó [região de sertão no RN e PB]. Por isso, quando ouvi essa entrevista me chamou a atenção. E nós estamos no Seridó, onde o IBGE nos  diz que 90% da população se diz católica. Eu não tenho ilusão de imaginar que os 90% são católicos praticantes, mas significa dizer que mais de 90% bebe deste caldo da cultura católica; aqui está a expressão [faz um gesto dirigindo-se à comunidade reunida na missa], a festa de Sant’Ana. Tem pessoas que nem frequentam as missas dominicais mas que estão na festa de Sant’Ana por causa desse caldo da cultura católica. E eu pergunto se não é um desafio para nós, num lugar tão bonito como esse, com

a longa tradição, com a cultura tão bonita mas ao mesmo tempo tão rígida como carregamos aqui no sertão, se nós não teríamos que dar uma boa notícia para tantos irmãos e irmãs que sofrem, como esta mãe sofreu, que sofrem como esse filho sofreu; que com certeza estão nos ouvindo e estão no meio de nós; que muitas vezes esperam de nós uma palavra, uma boa notícia.

O Evangelho por excelência é evangelho da inclusão; o Evangelho é sim uma porta estreita, é um amor exigente, mas é uma porta sempre aberta. Deus nunca fecha a porta para ninguém. Por isso talvez seria momento de, assim como fomos capazes de dar um salto na sabedoria do Evangelho e vencer a escravidão, não estaria na hora de a gente dar um salto na perspectiva da fé e superar preconceitos contra os nossos irmãos homoafetivos?

Pensemos, por exemplo: na perspectiva da fé, quando a gente olha para a homossexualidade a gente não pode dizer que é opção. Pois opção é alguma coisa que livremente você escolhe; e orientação ninguém escolhe – um dia a pessoa descobre com esta ou aquela orientação. Escolha será a maneira como você vai viver a sua orientação, se de uma forma digna ética ou de uma forma promíscua; mas promiscuidade pode-se viver em qualquer uma das orientações que se tem. Então, já que não é escolha, já que não há opção, já que a Organização Mundial da Saúde desde a década de 90 não considera mais como doença, na perspectiva da fé nós só temos uma resposta: se não há escolha e não é doença, na perspectiva da fé só pode ser um dom. É dado por Deus. Mas talvez os nossos preconceitos não consigam perceber o dom de Deus.

Assim como o preconceito com o negro; não se percebia que o negro era gente; dizia-se que o negro não tinha alma, o nosso preconceito não permite perceber esse dom.

O que é um preconceito, gente? O preconceito é um conceito antes de uma experiência. Como um preconceito cegou a vista de gerações diante da escravidão, como o preconceito cega a Europa frete o drama dos refugiados, como o preconceito torna insensíveis tantas lideranças políticas do nosso país diante da dor dos mais pobres com as leis, seja a reforma trabalhista, como a reforma previdenciária ou agora está sendo previsto ser revista a lei sobre as comunidades quilombolas. Tudo preconceito.

Papa Francisco é acusado por alguns dentro da Igreja que querem ser mais romanos do que o Papa, de que ele quer  baratear a doutrina católica baratear a doutrina católica, dizem que nós estamos vendendo, que ele está vendendo a doutrina católica por coisa barata. Na verdade, o que o Papa Francisco está querendo é que é o ponto de partida da doutrina católica seja a misericórdia; e a misericórdia, gente, não é baratear: a misericórdia é muito cara. Cristo pagou um preço caro pela misericórdia. A misericórdia é um preço caro que a gente paga por ser fiel ao Mestre Jesus.

Quando o Papa Francisco esteve a primeira vez aqui no Brasil, na Jornada Mundial da Juventude, em 2013, quando ele voltava para Roma, naquela entrevista que ele sempre concede no avião, a repórter brasileira Ilze Scamparini fez uma pergunta ao Papa a respeito de um escândalo homossexual que tinha acontecido no Vaticano naqueles dias. E dentro da resposta ele nos dá esta pérola, falando dos nossos irmãos homoafetivos e ele usa a expressão gay. Porque gay na Europa não tem o mesmo sentido para nós; quando falamos gay tem uma palavra carregada de preconceito, na Europa não há por isso; por isso aqui no Brasil é melhor chamar homoafetivo. Então, ele estava referindo como se fala na Europa, e ele disse: se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade quem sou eu para julgar?

[Aplausos]

O Catecismo da Igreja Católica, diz o Papa, diz assim: não se deve marginalizar estas pessoas: por isso devem ser integradas na sociedade. É bom que os ortodoxos também leiam o Catecismo da Igreja Católica.

No último sábado de 2015 numa audiência privada, que não foi revelada por Francisco, mas foi revelada pela pessoa que foi a esta audiência privada, o Papa recebeu em sua casa o transexual  Diego Neria Lejarraga e sua namorada [Macarena]. Como se deu esse encontro? O Papa recebeu uma carta desse transexual espanhol falando da dor que ele tinha, do preconceito que ele sofria na sua comunidade católica da Europa. Fruto disso, o Papa telefonou para ele e marcou essa audiência. E depois da audiência esse rapaz deu uma entrevista a um jornal espanhol na qual ele dizia que na sua comunidade esse transexual tinha sido chamado pelo padre e pelo povo como “filha do diabo”. Sensibilizado, Francisco tentou acolher aquele que não foi acolhido pelo irmão na Igreja.

O Papa Francisco, na sua Amoris Laetitia [Exortação Apostólica A Alegria do Amor, sobre a famíia], falando sobre o amor na família, ele dedica o capítulo oitavo para aquelas situações que ele chama de situações irregulares, falando sobretudo de segunda união e ele propõe três passos.

Eu me pergunto se aqueles três passos que o Papa Francisco propõe para acompanhar os irmãos em situações irregulares na vida a dois nós também nós não teríamos que dar em relação aos nossos irmãos homoafetivos:  acompanhar, discernir e integrar; acompanhar, discernir e integrar.

Não seria esta a sabedoria salomônica que deveríamos aprender de Jesus? Não é essa misericórdia que é parte da nossa herança com Deus como nos fala o salmo? Não somos todos, independente da nossa orientação, imagem de Cristo?

Cristo quando olha para a gente ele não olha para os nossos órgãos genitais; olha para o nosso coração. E quando ele nos chama, nos chama pelo coração e nós vamos com tudo, inclusive com as nossas orientações e somos todos imagem do Senhor.

Não é esta a pérola que Sant’Ana está nos dando hoje como nos lembra o Evangelho? A pérola da misericórdia de seu neto, de seu Deus e nosso Deus, do filho de Maria, do filho de Deus nosso irmão. Que Sant’Ana nos ensine, como ensinou a Maria, a ter os olhos fixos no transpassado Jesus e um olhar misericordioso para os transpassados na história.

Hoje quero contemplar como um dos transpassados da história os nossos irmãos e irmãs homoafetivos, que não são acolhidos nem chamados por nós.

Que Sant’Ana nos mostre o caminho para Jesus.

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