A invisibilidade das pessoas transgêneros no Brasil

São quase duas horas da tarde de uma terça-feira fria quando o cirurgião entra na sua sala no décimo primeiro andar de um prédio na avenida Brigadeiro Luís Antônio, centro de São Paulo.

Do Convdi

Um menino de camisola branca está sentado sozinho na beirada da maca e sorri, timidamente, para o médico que acaba de perguntar como está a sua recuperação. Ele não tem queixas.

G. é um homem trans de 20 anos alto e bonito, de cabelos pretos lisos bem curtos. Os olhos castanhos ficam úmidos entre uma pergunta e outra mas ele tem a coragem de levar sua história adiante.

Em meio a pausas durante a entrevista com a nossa equipe, G. conta que vai ao consultório sozinho desde o início do tratamento. Não, ele não teve nenhum acompanhante durante a pré-cirurgia, os dias em que ficou internado nem no pós-operatório.

A família de G. não suspeita de suas idas à clínica. Ninguém sabe que há uma semana, G. realizou uma mamoplastia masculinizadora. Para eles, G. disse que iria viajar com amigos para o interior.

Os amigos, ao mesmo tempo, não sabem que há menos de um mês G. possui cicatrizes nas costas, devido às surras de cinta causadas pelo seu pai, que passou a agredi-lo depois que soube que seu filho é transgênero. A violência verbal se tornou constante desde que G. assumiu sua homossexualidade cinco anos antes; três anos depois, G. passou a sofrer violência física do pai, que nunca aceitou sua condição trans. No começo G. recebia socos no rosto e foi obrigado a participar de sessões de terapia.

Nos primeiros episódios de agressividade, G. passava algumas noites fora de casa, mas percebeu que ao voltar a hostilidade sempre aumentara. Decidiu não falar mais sobre transexualidade com a família e fazer apenas o que estava a seu alcance até juntar dinheiro suficiente para a cirurgia plástico reconstrutiva que transforma a mama feminina em uma mama masculina.

Até o início do ano, G. usava faixas para comprimir as mamas femininas e obter a aparência de um tórax masculino. As faixas deformaram a pele dos seios, impedindo-o de continuar com a prática. G. foi diagnosticado com depressão, tinha repulsa a parte do corpo que não podia mais esconder. Após o laudo do psiquiatra testemunhando a seu favor, G. pôde se preocupar com os procedimentos transexualizadores.

Pela Organização Mundia de Saúde (O.M.S.) o transexualismo (sic) é considerado como sendo uma patologia, classificada pelo CID-10 F64. E, por esse motivo, a cirurgia de transgenitalismo só pode ser realizada obedecendo os critérios estipulados pela Resolução 1.652/2002 do Conselho Federal de Medicina.

Por este motivo, G. começou a tomar hormônios após o laudo do psiquiatra e iniciou o pré-operatório da mamoplastia masculinizadora, que deixou de ser reconhecida em caráter experimental em 2007 e, em 2010, passou a ser status de saúde pública com garantia do Ministério Público Federal de arcar com todos os custos pelo SUS.

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Basta uma busca rápida na internet para encontrar algumas dezenas de crimes de violência cometidos contra travestis e transexuais, contabilizados só nesse mês de junho. São muitos os casos pesados que resultaram em morte, envolvendo espancamento e estupro. Apesar de ser uma espécie de consenso social que ninguém merece morrer, muito menos de formas tão cruéis, parece que alguns tipos de assassinatos provocam menos sensibilização e choque do que outros — e os crimes praticados contra pessoas trans fazem parte dessa categoria que não ganha empatia de quase ninguém.

Para entender o que acontece no Brasil não é preciso ter experiência em movimentos sociais e grupos de militância. Travestis e transexuais morrem todos os dias em números epidêmicos, de modo geral, porque nossa cultura considera o feminino inferior e não suporta a ideia de que alguém fuja dos rígidos padrões de gênero. Sendo assim, para quem é preconceituoso, é ultrajante aceitar que uma pessoa designada “homem” ao nascer se “rebaixe” e queira levar a vida como uma mulher. Ou que uma pessoa tida como mulher ouse se compreender como homem. Em uma sociedade que estabeleceu e mantém categorias tão fechadas, fugir da regra é uma afronta.

O problema é que muitas pessoas trans não desejam deliberadamente afrontar a sociedade; na maior parte do tempo, travestis e transexuais simplesmente tentam sobreviver e seguir com as tarefas cotidianas da vida. Essas pessoas estão submetidas a um sofrimento incalculável, pois mesmo seus direitos mais básicos, como estudar, trabalhar, ter um documento, comprar roupas ou mesmo ir ao banheiro, lhes são constantemente negados. Essas atividades podem ser questões corriqueiras para muita gente, mas certamente não são para quem é trans.

Segundo um relatório da ONG internacional Transgender Europe, o Brasil é o país onde mais ocorrem assassinatos de travestis e transexuais em todo o mundo. Entre janeiro de 2008 e abril de 2013, foram 486 mortes, quatro vezes a mais que no México, segundo país com mais casos registrados.

O relatório é baseado no número de casos reportados, o que indica que ele pode ser ainda maior e não só no Brasil, mas em todo mundo, já que países como Irã e Sudão não possuem dados disponíveis sobre este tipo de crime.

Para Cris Stefanny, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o elevado número de mortes no país reflete a falta de uma lei que puna crimes de ódio contra travestis e homossexuais.

“Outros homossexuais já estão com a violência tão interiorizada que quando são atacados na rua sequer pensam em denunciar porque acham que isso é muito natural”, declara Stefanny.

De acordo com a militante, a população LGBTT precisa denunciar a situação do Brasil nos tribunais internacionais para pressionar o poder público. “Tínhamos um projeto de lei no Congresso Nacional e ele virou uma moeda de troca”, criticou Cris ao se referir ao projeto de lei 122/06, que tornaria a homofobia crime.

O projeto foi anexado em 2013, passando a tramitar dentro das propostas de reforma do Código Penal após forte debate político dentro da comissão de direitos humanos da Câmara, então presidida pelo deputado evangélico Marco Feliciano (PSC-SP).


No mundo do trabalho, transgêneros permanecem excluídas

Travestis e transexuais ainda seguem na luta pela inserção no mercado de trabalho. Por causa da identidade de gênero, a maioria das empresas seguem distantes da inclusão. Dados da Antra mostram que a situação é preocupante: 90% estão se prostituindo no Brasil.

A militante transfeminista e diretora do Fórum da Juventude LGBT Paulista Daniela Andrade contou o que sofrem: “Essas pessoas estão marginalizadas, alijadas dos bancos das escolas e universidades, preteridas no mercado de trabalho, sendo forçadas a se prostituírem, tendo o gênero deslegitimado diuturnamente, sendo agredidas por uma sociedade que não nos considera gente, que não vê humanidade em nós”.

L.R., de 18 anos, admite que já pensou em sair da escola por causa da transfobia. “Ano passado eu cheguei a quase fechar a matrícula do cursinho por isso, mas só faltavam dois meses pra acabar mesmo, e decidi ficar mesmo assim. Mas passava mais tempo na sala de estudos do que dentro da sala de aula”, contou ele, que é homem trans. “Quando eu assumia minha condição abertamente, eram comuns piadas sobre ser ‘menina macho’, me chamarem de ‘traveco’, coisas desse tipo”. Entretanto, para ele, o pior preconceito era o que ele sofria pela direção do colégio particular, que não usava o seu nome social. “É constrangedor quando você está em uma sala de aula rodeado de pessoas e pra fazer chamada gritam seu nome de RG. Eu, no ensino médio, nem respondia quando isso acontecia. Conversei com professor por professor até que aceitassem me chamar pelo nome social. No banheiro, não ia por medo de me verem entrando ou saindo de lá.”

No mesmo colégio, L.R. fez o curso pré-vestibular e sofreu novamente com a transfobia da direção. “No colégio, eles colocavam as carteiras de estudante uma do lado da outra para os alunos pegarem na saída. Pedi para usar meu nome social ou pra, pelo menos, deixarem minha carteira de estudante guardada no fim da aula, mas disseram que isso era contra a lei”, relatou. O uso do banheiro continuou sendo uma situação constrangedora: “Disseram que não poderiam me deixar usar o banheiro do meu ‘sexo oposto’ porque isso iria constranger os outros alunos”.

L.R. ainda não conseguiu ter acesso ao ensino superior, e um dos motivos foi o tratamento inadequado que recebeu durante o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2013. “Meu rendimento foi bem ruim porque me acusaram de falsidade ideológica. Falaram que tinham que fazer um processo pra verificar se era mesmo minha identidade porque não acreditavam que a foto e nome eram meus”, disse.

Thiago Gonçalves, de 20 anos, acredita que sua dificuldade para arrumar um emprego se deve à transfobia. “De todas as vezes que fui chamado para a entrevista, no mesmo momento falavam que a vaga não estava mais disponível. Eu ainda não mudei o nome dos documentos, então de repente chega alguém com uma aparência completamente diferente do nome no RG. Tentei entregar pessoalmente o currículo, mas só pela cara do pessoal que olhava o nome eu já sabia que não tinha chance.” Thiago mora na cidade de São Paulo e já está há seis meses sem emprego.

“Infelizmente larguei a faculdade por conta de constrangimentos e preconceito dos alunos na sala. Então sempre ‘estudei’ em casa e não tenho como apresentar nenhum diploma, assim como muitas empresas pedem”, declara Thiago.

Neto Lucon, do blog LGBT NLucon, comenta que a baixa empregabilidade de pessoas trans se deve às dificuldades que a família, a escola e a sociedade no geral impõem. “As travestis e transexuais muitas vezes são rejeitadas pela família, não encontram apoio na escola, não recebem apoio do Estado e, por consequência, não estão preparadas nem capacitadas para enfrentar o mercado de trabalho. Sem apoio familiar, com baixa escolaridade e sem experiência, elas ficam à margem dessa sociedade e acabam sendo empurradas pela cultura e pelo estigma da prostituição”.

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Ele ainda comentou que tem dificuldade para publicar um livro: “Tenho um livro chamado ‘Por Um Lugar ao Sol — Travestis e Transexuais no Mercado Formal de Trabalho’, em que trago cinco histórias de vida de trans que estão trabalhando em profissões como enfermeira, professora e policial. Mas que não consegui publicar porque a maioria das editoras que levei disse: ‘As pessoas não querem saber de travestis trabalhando, mas se você escrever um livro sobre a vida das que fazem programa, a gente vai achar ótimo’”.

Neto ainda analisou: “Ultimamente, já vemos travestis e transexuais formadas, pós-graduadas e mestrandas, mas muitas ainda enfrentam dificuldade para entrar no mercado de trabalho. A sociedade observa a transgênero como uma pessoa que se passa por aquilo que não é, que quer ser aquilo que não é, como um ser de outro planeta. E, pensando desta forma, baseado apenas em uma parte do corpo, se vê intimidado a dar emprego a uma farsa, a uma figura que não é reconhecida como identidade, que erroneamente não tem credibilidade”.

Cris Stefanny fala sobre a falta de oportunidades no mercado de trabalho: “As transexuais que a todo custo tentam arrumar um emprego conseguem serviços subalternos, como limpar o chão, trabalhar em cozinhas. Há muitas que têm currículo, passaram em concurso público, como foi o caso da enfermeira que foi aprovada nas provas e a chefia do hospital a colocou para trabalhar no almoxarifado”.

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A transfobia é um dos preconceitos mais generalizados dentro da sociedade. Não é raro casos de movimentos feministas e LGBT que excluem as transexuais de suas pautas. Para Daniela Andrade, a agenda de travestis e transexuais é abordada de forma precária e negligente pelo movimento LGBT. Já Cris denuncia que a parcela elitizada dos homossexuais trata as pessoas trans como “subumanas e subalternas”, e não respeita a identidade de gênero. À respeito das feministas, ela ressalta que parte delas acaba sendo machista: “Parece que a mulher se resume a uma vagina, quando na verdade a mulher é muito mais que isso. A mulher não é necessariamente isso e muito menos só isso. Você não nasce homem ou mulher, você torna-se homem ou mulher conforme o seu comportamento social, aquilo que você assume como identidade”.

Com tanto preconceito e dificuldade, muitas travestis e transexuais optam pela prostituição para se sustentar. Neto ainda depôs sobre um caso que presenciou: “Estava na avenida Amaral Gurgel, em São Paulo, e vi um homem chamar uma travesti em um carro e, enquanto ela caminhava na direção dele, esse homem a atropelou e a arremessou para o meio da rua. Depois, ela me contou que há pessoas que jogam bexigas com urina, latina de cerveja, ovos, fazem turnê pelo ponto para as observar como se fossem animais em um zoológico”.


Caminhos

Neto apontou possíveis saídas para solucionar a baixa empregabilidade de trans: “A escola ser mais bem preparada para inserir e respeitar uma aluna trans. As empresas e empregadores serem sensibilizados e preparados para receber uma profissional trans. São políticas públicas que visam humanizar essas pessoas nos lares, na visibilidade de exemplos positivos e no combate ao estigma da prostituição”. Ele listou iniciativas que já funcionam, como o Projeto de Lei de Identidade de Gênero, apelidada de João Nery, de autoria de Jean Wyllys (PSOL) e Érika Kokay (PT). “É a Lei João Nery, que visa facilitar a mudança do nome no documento, ser aprovada. É a iniciativa do site TransEmpregos, que visa reunir travestis e transexuais profissionais e empregadores que estejam dispostos a contratar tais pessoas. São exemplos, como da SP Escola de Teatro, que tem uma cota para funcionárias travestis ou transexuais, serem ressaltados. É a mídia sabendo respeitar uma pessoa trans, inclusive a sua identidade de gênero, e não tratá-la como marginal. Tudo isso ajuda o grupo ser visto como mais um cidadão e cidadã, de maneira humanizada e mais produtiva”.

Cris, por sua vez, comentou que faltam bolsas e cotas para transexuais. “Você tem bolsa miséria, bolsa pobreza, bolsa universidade, bolsa tudo, mas pra classe travesti e transexual você não tem bolsa-nada, né?”. Ela também destacou a importância da Lei João Nery.

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Apesar do projeto de lei de Wyllys e Kokay, o diálogo com a classe política é quase inexistente, segundo a presidente da Antra. “A bancada conservadora evangélica faz muito barulho e as demais parcelas de deputados entram nessa ladainha. Devido as parcerias políticas que são feitas com a bancada ruralista, com os pentecostais e com os fundamentalistas, infelizmente a gente não consegue avançar. Então, se não tem uma lei federal pra punir assassinatos e discriminação, infelizmente a gente não vai avançar muito, porque as leis estaduais e municipais têm apenas o poder de punir com multas, com sanções leves, e não de punir com base em uma lei federal”.

A Antra funciona justamente para apoiar as pessoas trans que sofrem violência. Apesar de não existir uma lei federal que especifica a transfobia e homofobia como crimes, a Constituição preserva a integridade de todos os indivíduos. A associação, formada por ONGs de transgêneros e homossexuais mistas, orienta as vítimas de transfobia a buscar as autoridades competentes e denunciar o caso para dar visibilidade à causa.


O que já está sendo feito

Em janeiro de 2015, a Prefeitura Municipal de São Paulo junto com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos lançou o programa Transcidadania, que tem como objetivo promover a reintegração social e a reinserção das travestis e transexuais no mercado de trabalho. O projeto oferece uma bolsa de R$ 840 para essas pessoas concluírem o ensino fundamental e médio por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que acompanham cursos profissionalizantes. Cerca de 100 vagas são disponibilizadas com duração de dois anos. A prioridade é para travestis e transexuais que não têm moradia.

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De acordo com a pesquisadora da PUC-SP Rosana Araújo essas políticas públicas da prefeitura municipal paulista são importantes. Entretanto, os efeitos delas serão visíveis daqui a alguns anos.

“Garantir o direito mais básico dessas pessoas como o direito à escolarização, a ter moradia, o uso do nome social enquanto não se tem ainda uma lei que garanta o repeito à identidade de gênero, é preciso facilitar para as pessoas que querem entrar com processo judicial pra mudança de nome. É preciso apoiar essas pessoas com políticas de profissionalização.”

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