10 ANOS DA LEI 10.639/03: e como ficamos?

por Flávio Passos                                                       Vamos, amigo, lute. Vamos, amigo, ajude! Senão a gente acaba perdendo o que já conquistou”

    Edson Gomes
Divulgação
Parece que foi ontem, vendo, pela TV, a primeira lei promulgada e divulgada pelo presidente Lula aos 9 de  janeiro de 2003. A Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que obriga a inclusão da história e cultura africana e afro-brasileiras nos currículos escolares de todas as redes de ensino do país. 10 anos! E aí? O que comemorar? O que mudou? Em que avançamos? A educação mudou? Mudou nossa forma de pensarmos a nós mesmos? O que temos, após 10 anos? Uma lei a ser ainda implementada? Sinto que da forma como chegamos neste dia, podemos comemorar muita coisa, muita luta, muita gente que, zumbilicamente, doou-se incansavelmente pela implementação de uma lei tão necessária na construção de nossa democracia. Muito do que avançamos é fruto dessa luta. A própria 10.639/03 precisa ser compreendida enquanto conquista, popular e histórica, da organização dos movimentos negros. A lei ajudou a potencializar a luta, a consciência contra o racismo enquanto consciência de todos.
O Brasil nunca mais seria o mesmo. Há um Brasil antes e um Brasil depois da 10.639. Mas, também precisamos refletir o quanto a defesa da 10.639/03 gerou resistência de todas as formas. De acusações de “racismo ao contrário” a mecanismos dissimulados de se tentar diluir e descaracterizar a proposta de redimensionamento da própria LDB. Racismo não se elimina com decretos, mas que eles ajudam, ajudam. A 10.639/03 e as Diretrizes Nacionais de Educação das Relações Étnico-raciais dão o norte de nossa ação. Um dos textos mais lindos e bem elaborados sobre educação no Brasil as diretrizes (aquele livrinho verde distribuído pelo MEC ostensivamente nos cinco primeiros anos da Lei) de autoria da professora Petronilha Silva (UFSCAR),de quando ela estava no Conselho Nacional de Educação, promulgado em 2004. O citado texto enfatiza o caráter de reconhecimento, a valorização e o respeito da cultura afro-brasileira no fazer pedagógico em todas as fases de nossa formação.
A grande mudança, após a 10.639/03, é que falar da África e do negro em sala de aula, de uma forma respeitosa para com nossa história e riqueza, deixou de ser “coisa” de alguns militantes. Mas, não foi só nisso que avançamos. Muitos cursos de formação de professores, em redes públicas e privadas. Muito material didático produzido e de excelente qualidade. Inúmeras de dissertações, monografias, teses, apresentando uma visão profunda, acadêmica, contextualizada dos desafios desse processo de descolonização do pensar que é o fazer educação plural no Brasil. Talvez, o nosso maior e mais visível salto qualitativo foi a pujança de material didático e paradidático produzido. Passamos a pensar e fazer a educação de uma forma cada vez mais contextualizada, na perspectiva de Paulo Freire, uma educação para a autonomia que passa pelo respeito à diversidade. A educação indígena, quilombola, do campo, da diversidade sexual, da diversidade de gênero, da diversidade religiosa.
Outra dimensão que podemos comemorar foi a criação de dezenas de programas de pós-graduação, das disciplinas criadas nos programas de graduação, especialmente os de formação de professores, dos cursos criados em instituições, de Norte a Sul do país. Destaco, com muito orgulho, o ODEERE, em Jequié, com a professora Marise de Santana e a transformação promovida na universidade e na comunidade jequieense e uesbiana. Também, a força da professora Graziele Novato que, há mais de 25 anos já empunhava a bandeira da História da África nos espaços da UESB, especialmente no curso de História. Muitas secretarias municipais investiram na criação de órgãos de educação para a diversidade em suas coordenações pedagógicas, promovendo uma qualidade e continuidade dos projetos de formação dos professores e estruturação de diretrizes municipais de educação e diversidade étnico-raciais. Importante registrar que, em muitas regiões e redes de ensino, a Lei foi cumprida, ora por força da ação dos ministérios públicos, ora pela pressão de militantes, dentro e fora dos governos. No entanto, não temos dados precisos de quantos dos mais de 5 mil municípios colocam em prática a lei. Talvez, olhando por alto, não tenhamos alcançado, na melhor das estimativas, 10% de implementação efetiva da lei. O que já seria uma revolução.
Entretanto, podemos festejar que saímos de duas posturas que tendiam a se cristalizar no fazer pedagógico: a redução do negro à condição de escravo submisso (nem mesmo de escravizados) e a exaltação do dia “13 de maio” como data a ser comemorada. Definitivamente, Zumbi entrou nas escolas. E o 20 de Novembro passa a ser uma data celebrada com muita reflexão do que significa nosso pertencimento, nossas raízes, nossas heranças, nossos desafios raciais. E alguns temas sobre o negro começaram a ser trabalhados e incorporados, ora enquanto disciplina, ora, transversalmente. A África e seus reinos, sua geografia, seus inventos, sua cultura, suas religiões. A escravidão dos africanos no processo de colonização das Américas e as formas de resistência dos negros em todos os tempos e lugares. Os quilombos, de ontem e de hoje. As revoltas negras, as lideranças e personalidades negras de todos os tempos. A tradição, a cultura, a beleza negra. O racismo foi pautado na escola não como coisa que só acontece nos EUA ou fora da ambiente escolar. Mas como algo que aprendemos em sociedade e do qual é possível nos libertarmos. Mas, de repente, no meio do caminho, se falar de racismo escolar gerava muito desconforto, começou-se uma campanha ampla contra o bullying, que nem tradução tem para o português brasileiro e que também não foi abordado na literatura a respeito a partir da principal agressão contra características físicas sofridas pelas crianças negras, indígenas, quilombolas, de santo, mulçumanas e ciganas: a discriminação racial e religiosa.
Muitos educadores conseguiram redimensionar todo seu fazer escolar, seja qual for a disciplina, a matéria, o conteúdo, o lugar de ação, dialogando com a uma perspectiva plural de se pensar o ser humano e a sociedade. A professora e antropóloga Josildeth Gomes Consorte (PUC – SP), em suas reflexões sobre a educação e diversidade racial no Brasil, sempre traz a reflexão de que professor é esse que falamos que tem, lá na ponta do processo de implementação da 10.639/03, a missão de fazer a lei acontecer? Uma pessoa que veio de uma formação cristã, numa perspectiva de ascensão social promovida pela sua inclusão no magistério e na academia, numa sociedade que prima pela perspectiva de um ser humano idealizado, branco, homem, rico, hétero e cristão. Uma sociedade que, desde o início do século XX, pensa a educação nos moldes ocidentais, como mecanismo de afastar o negro de suas tradições, de seu pertencimento, de suas raízes, tidas como empecilho para o desenvolvimento econômico, social e moral do país. Nesta mesma linha, professora Marise de Santana (ODEERE, UESB) também reflete em seus trabalhos acadêmicos sobre os desafios na formação dos professores no seu pertencimento étnico-racial enquanto condição para o respeito e valorização do legado africano e da diversidade, inclusive religiosa, que ele encontrará em sala de aula.
Entretanto, 10 anos depois, temos a sensação de que vamos começar do zero a cada manhã, a cada conselho de classe, a cada jornada pedagógica, a cada aula. Mas, a sociedade já se enxerga de outra forma. Promovemos uma mudança de paradigma a partir da educação. A escola foi convidada a promover na sociedade uma auto-reflexão, um olhar-se no espelho. Uma auto-imagem, tanto do negro, quanto do não negro, surgiram a partir desse movimento. Falamos de negritude, mas também de branquitude. Falamos de racismo, mas também de privilégios. Talvez, fazendo um balanço dessa primeira década, já temos um saldo positivo: conseguimos tornar o racismo identificável em nossas relações escolares. E a auto-imagem da criança negra passou a ser considerada com mais cuidado dentro das relações escolares, dentro do próprio currículo. A criança saber-se descendentes de africanos, de reis, rainhas, príncipes, heróis civilizatórios, de uma cultura tão rica quanto as demais mundo afora, do berço da civilização humana, de milhares de povos com suas milhares de línguas, saberes, deuses e expressões é o que está em jogo. E, se em um determinado momento de nossa história, precisamos lançar mão uma lei federal que nos obrigasse a nos conhecermos e às nossas raízes plurais, após passarmos pelas fases da novidade “afro-pedagógica” e dos percalços que nossa própria condição eurocentrada e de pensamento colonizado nos impõe, chega a hora de avançarmos.
Os motivos pelos quais precisamos criar uma lei são os mesmos pelos quais precisamos lutar para que esta lei não se transforme em “letra morta”. Como dizia Florestan Fernandes, o brasileiro “tem preconceito de ter preconceito”. Nosso racismo é tão diluído em nossas relações, pessoais e institucionais, que não conseguimos identificá-lo espontaneamente, nem em nós, nem nos outros, nem nas estruturas. Em uma conferência recente, ao refletir sobre o décimo aniversário da Lei 10.639/03, a professora Petronilha Silva disse: “…Nas escolas de todos os níveis de ensino, da educação infantil ao ensino superior, hierarquias, privilégios, desrespeitos, discriminação, racismos são ensinados. São ensinados em relações hostis. E porque isso? É que a nossa sociedade ainda se organiza dentro do sistema mundo criado pelos europeus conquistadores do século XVI”.(http://tedxtalks.ted.com/video/Relaes-tnico-raciais-e-educao-P;search:tag:%22tedxuff%22)
Há um debate a ser retomado nesta segunda década da 10.639/03, baseado em duas perspectivas, as mesmas que fizeram desencadear a lei. Pensar a 10.639/03 enquanto ponto de chegada e ponto de partida. Conquistar o início de um governo popular e participativo com a promulgação de um decreto que obriga o ensino da África e da presença do negro em nossa história e cultura, foi a maior conquista da força da organização do movimento negro, dos movimentos negros, a nível mundial, culminando com a Conferência de Durban, em 2001, e a nível nacional, com a Marcha de Zumbi, de 1995. A 10.639/03 inaugura uma década de diversas leis e  decretos governamentais que servem de diretrizes para a compreensão do papel do Estado na efetivação de políticas de ações afirmativas. No entanto, enquanto ponto de partida, a 10.639/03 dependeria, sob pena de se tornar esquecida, de que o tripé movimento social, governo e academia se mantivesse dialogando na busca de sua efetivação. E os sistemas de ensino, onde a lei é, ao mesmo tempo, reivindicada, aplicada e pensada, catalizam as três dimensões citadas. As melhores experiências de implementação da lei se deram a partir dessa sintonia. Qualquer movimento em defesa da 10.639/03 precisará unir o local e o nacional, mas principalmente, considerar essas três dimensões se articulando. O cenário não é tão animador. O movimento social negro passa por transformações, ainda tentando redefinir seu espaço de atuação. Os governos não entenderam seu papel, ou fazem de conta que não entendem. E a academia, mesmo com milhares de cotistas adentrando seus espaços e pesquisas, produz sobre o tema mas, muitas vezes, para si mesma.
É momento de avaliarmos com coragem.  Se não conseguimos promover a educação das relações étnico-raciais é porque esse projeto incomoda, desestrutura nossas relações e nossa compreensão de sociedade, dividida, estratificada em classe, mas principalmente, em cor e raça. Não implementar a 10.639/03 significa manter a escola no seu papel colonial e colonizador de cristalizar as nossas desigualdades e assimetrias sociais, nas quais os papéis de negros e brancos já se encontram definidos e inquestionáveis. Cumprir a 10.639/03 significa compreender que adiar o pagamento da dívida educacional para com a população negra é postergar a possibilidade da construção de uma nação efetivamente democrática. Ainda há muito o que ser feito, principalmente por parte dos gestores públicos responsáveis pela educação oferecida em todos os níveis de ensino. E só o farão a partir de uma consciência do significado da 10.639/03.
Tudo parte, então, do projeto de sociedade e ser humano que cada um de nós acredita e defende. E, a depender do lugar social em que estivermos, se estudantes, se gestores públicos, se pais, se professores, se lideranças, cada um com sua parcela de responsabilidade, o impacto dessa compreensão repercute na vida, não só nossa, mas de milhares de pessoas. Um exemplo do que digo é que, há 10 anos da 10.639/03 (a repetição da lei é didática) que coincide com os 10 anos das cotas na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e 05 anos das cotas na UESB, é o alto grau de desconhecimento e alienação da comunidade escolar em geral, mas principalmente dos alunos, inclusive os concluídos do ensino médio, com relação à importância, relevância, pertinência, legalidade e legitimidade dos regimes de cotas na promoção de reparação pelos séculos de marginalização a que foram submetidos os negros neste país.
Concluo esta reflexão partilhando da alegria de encontrar, na tarde de ontem, uma jovem negra, vinda de uma comunidade rural negra do sudoeste da Bahia, cotista do curso de história na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), feliz da vida em seu segundo semestre e orgulhosa por já ter cursado as três disciplinas de História da África do curso, sendo a terceira optativa, dizendo do quanto ela cresceu em compreensão “de nossa riqueza cultural e histórica”. No brilho daqueles olhos pude ver que não temos a dimensão do quanto avançamos e podemos avançar a cada passo dado nessa luta. Já não somos tão poucos nessa empreita. E a semente está lançada em terreno fértil.
Salve, Zumbi dos Palmares! Salve, Petronilha Silva! Salve, Povo Negro! Salve, Josildeth Consorte! Salve, Graziele Novato! Salve, Marise de Santana! E quem tem a coragem de “fazer o que precisa ser feito”. Salve, 10.639/03! Um dia, você será esquecida, porque teremos superado o racismo até um ponto de encará-lo como passado. Por enquanto, você é mais que necessária; você é nossa lei!
Dedico este texto, em nome de todos e todas os (as) professores (as), às queridas professoras Irene Izilda (Rede Educafro) e Vera Lopes (Pastoral Afro e CESEEP), que há décadas no movimento negro levantam a bandeira da educação das relações étnico-raciais e hoje se encontram na docência universitária. Duas mulheres negras guerreiras com as quais convivi na militância negra em São Paulo, por trazerem em seu sorriso, axé e sabedoria, a esperança de que cada passo nos faz melhores. Axé, paz na vida!

Flávio Passos, militante negro em cursinhos comunitários, assessor técnico de igualdade racial na Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, professor de Filosofia na Rede Estadual, mestre em Antropologia pela PUC-SP.

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