O filho da psicóloga Luana Cruz Bottini, 47, estava no quarto ano do ensino fundamental quando esbarrou em um colega durante um jogo de futebol na escola. “Seu negro filho da puta”, ouviu em resposta. O xingamento foi classificado como racista pelas crianças ao redor, que repreenderam o agressor.
“Às vezes é tão sofrido para ele [passar por situações de racismo] que ele nega, mas tinha uma comunidade ali que percebeu o que estava acontecendo e se levantou para protegê-lo”, afirma Luana.
Ela é mãe de um adolescente de 13 anos e de uma menina de 11, alunos de 8º e 6º ano do ensino fundamental da Escola Nossa Senhora das Graças, conhecida como Gracinha, na zona sul de São Paulo.
Em 2021, a instituição se comprometeu a promover uma educação antirracista. Desde então, organiza eventos de letramento racial para pais, professores e funcionários e criou um núcleo de afeto negro, onde estudantes compartilham experiências.
As mudanças estão alinhadas ao que acontece em diferentes escolas públicas e privadas no país. Assim como o próprio debate racial, essas iniciativas têm se tornado mais complexas e multidirecionais a cada ano.
Para Gabriel Domingues, administrador público pela FGV e ex-presidente da Ponteduca (organização que se dedica à democratização do ensino particular), uma educação antirracista efetiva não se restringe a iniciativas voltadas à prevenção da discriminação racial.
“É preciso criar um projeto pedagógico capaz de combater o racismo nas suas mais diversas esferas. Essa estrutura deve trabalhar aspectos como as desigualdades socioeconômicas, o conteúdo pragmático das aulas e as manifestações de cada grupo envolvido na comunidade escolar.”
O Gracinha produziu um guia de enfrentamento ao racismo com orientações práticas. O manual foi elaborado pelo Grupo Guardião, formado por pais, direção, equipe técnica e docentes. Cerca de 700 livretos foram entregues na festa junina da escola. A escolha foi estratégica.
“A gente queria alcançar famílias brancas que não participaram de nenhuma iniciativa e mães de alunos que já tivessem enfrentado conflito na escola, mas não iriam para uma apresentação sobre o material”, diz Roberta Raffaelli, 52. Ela é mãe de uma aluna do 1º ano do ensino médio e membro do grupo.
O material explica o que é o preconceito, como e onde denunciar casos. “Levamos em conta a faixa etária e quem são os sujeitos envolvidos”, afirma Aline Gama Vieira, coordenadora de equidade e antirracismo da escola.
O conteúdo das aulas também passou por revisão e um bibliotecário foi contratado para ampliar o número de obras escritas por mulheres, pessoas negras e indígenas.
Para especialistas, o caminho para se construir uma escola antirracista passa pela preparação de professores para combater a discriminação e pela valorização de pessoas negras no ambiente escolar.
Com sede em Salvador (Bahia), a Escola Afro-Brasileira Maria Felipa traz à centralidade das práticas de ensino saberes ancestrais, científicos e tecnológicos africanos e indígenas. “Nós produzimos material próprio e a escola tem uma identidade visual que reforça esse protagonismo”, afirma a diretora, Cristiane Coelho.
A instituição, que começou como uma colônia de férias em 2018 e hoje tem ainda uma unidade no Rio de Janeiro, oferece educação básica a alunos de 2 a 10 anos de idade –a escola não é exclusiva para estudantes negros. Para a diretora, é importante ensinar que existe literatura para além dos clássicos, com representação positiva de pretos e pardos.
“Queremos que as crianças negras se vejam nessas pessoas e que as crianças brancas aprendam que pessoas diferentes delas também protagonizam esses espaços”, afirma.
Introduzir uma perspectiva antirracista desde a infância pode contribuir para a construção de uma sociedade menos preconceituosa, segundo Domingues, do Ponteduca.
Para ele, quanto mais cedo as crianças tiverem esse tipo de educação, mais cedo será possível reduzir o preconceito. “Elas vão aprender a tratar os outros como iguais, a enxergar a diversidade e a ver todo tipo de gente.”
Combater as desigualdades educacionais é uma das metas do Colégio Estadual Francisco Antônio Vieira Caldas Júnior, de Porto Alegre.
A instituição foi uma das escolhidas pela Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul para se tornar uma Escola Referência Antirracista, com modelos de aprendizagem baseados em princípios como a equidade, o combate ao racismo e a valorização da diversidade.
O objetivo é assegurar a permanência e o sucesso acadêmico dos estudantes. Para isso, a escola começou pela implementação da Lei 10.639/03, que prevê o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena.
“Estamos com 20 anos de atraso, mas avançamos e já não usamos a figura das pessoas negras de uma maneira negativa, como sinônimo de escravidão, por exemplo”, afirma o diretor Vinicius Dill Soares.
Segundo ele, a instituição recebeu alunos negros transferidos de escolas particulares após o início do projeto-piloto. “Elas estavam sofrendo racismo, inclusive o institucional, e as famílias entenderam que aqui elas seriam respeitadas”, diz.
A equipe de gestão da escola tem sido capacitada desde o ano passado. Em janeiro, professores, merendeiras, seguranças e funcionários da secretaria participaram de uma imersão antirracista.
Depois mapearam áreas de disciplinas como matemática, ciências e artes para serem trabalhadas sob o viés da diversidade. Após a validação dos resultados, o modelo deve ser replicado em outras escolas.
O maior desafio do projeto é tornar o modelo pedagógico autossustentável, segundo o diretor. “Precisamos que ele não dependa nem de quem está na gestão escolar, nem do governo. Esses cargos são passageiros.”
Nesse sentido, ele busca documentar o processo, produzir evidências de bons resultados e comprovar a efetividade das ações.
“Já houve diferença para os estudantes negros daqui. Eles se engajam, se emocionam, se reconhecem na escola e aprendem melhor.” A ausência nas aulas, um dos primeiros sinais de evasão escolar, também tem diminuído, de acordo com ele.