Nesta terça-feira, 23, Annalena Baerbock, eleita recentemente como a presidente da Assembleia Geral da ONU, iniciou seu discurso afirmando que as circunstâncias atuais não dão margem para “comemorar” os 80 anos da organização. Vale lembrar que Baerbock é a quinta mulher a presidir a assembleia nestas oito décadas, ou seja, as 75 sessões restantes foram lideradas por homens. “Se pararmos de fazer a coisa certa, o mal prevalecerá”, declarou ela. Sua fala acontece em tempos de recorrentes ameaças à sustentabilidade do sistema multilateral da ONU e a ascensão das múltiplas crises globais.
Ao subir o púlpito da sede das Nações Unidas, em Nova York, o presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva, também nesta terça-feira 23, foi na mesma direção de Baerbock ao dizer que o multilateralismo “está diante de nova encruzilhada” e que a autoridade das Nações Unidas “está em xeque”. Lula defendeu maior participação dos países do Sul global em questões internacionais, como a guerra da Ucrânia. “A Iniciativa Africana e o Grupo de Amigos da Paz, criado por China e Brasil, podem contribuir para promover o diálogo”, disse Lula, indicando que a voz do Sul Global deve ser ouvida.
Nos últimos anos, a força institucional das Nações Unidas tem sido internacionalmente questionada e com exemplos concretos. Ficou aparente a incapacidade do Conselho de Segurança de impedir devastação em diversos conflitos – Síria, Myanmar, Ucrânia, e mais recentemente, Gaza – mesmo quando provou-se a evidência de violações extensas de direitos humanos. O caso de Gaza é emblemático: a ONU possui agências como a UNRWA, mandatos especiais, comissões de inquérito, resoluções da Assembleia Geral ou do Conselho de Direitos Humanos. Mas muitas das resoluções são vetadas ou ignoradas; a ação humanitária é bloqueada por restrições práticas, segurança, ou mesmo veto político de Estados poderosos (como os Estados Unidos).
Presente nesta assembleia, Geledés – Instituto da Mulher Negra, se coloca em estado de máxima atenção às reformas na ONU, anunciadas oficialmente como a Iniciativa UN80, em maio passado, pelo secretário-geral, António Guterres, que enfatizou à época a busca por “renovação e aumento da eficiência da ONU” no que chamou de “era de extraordinária incerteza”.
O que Geledés se atenta é exatamente o que virá para além dos ajustes administrativos, com real risco de haver redução ou total eliminação de mandatos e instrumentos específicos de combate ao racismo e sexismo, – fóruns, relatórios, comissões e mandatos de relatores especiais que operam na ONU como referência para monitoria e incidência.
Em reuniões informais e a portas fechadas, alguns Estados-membros já declararam que há “muitos mandatos antirracistas” ou que estes poderiam ser integrados, sobrepostos ou dissolvidos sob o argumento de eficiência. No intenso debate sobre o que ficará em pé e o que cairá por terra nas reformas, resta saber se o que foi conquistado a duras penas nas últimas décadas por organizações afrodescendentes, africanas, feministas e de outros segmentos da sociedade civil permanecerá.
“É nestes espaços que os Estados-membros da ONU fazem anúncios importantes que demonstram ou não seus compromissos com as agendas globais”, destaca Letícia Leobet, assessora internacional de Geledés e copresidente do Stakeholder Group de Afrodescendentes. “Foi, inclusive, durante a Assembleia Geral da ONU de 2023 que o presidente Lula fez o anúncio do ODS18”, lembrou ela.
Na prática, o que se discute entre os grupos da sociedade civil é sobre quais estruturas restarão no escopo da ONU, o que será mesclado, e o que será cortado ou o que será completamente descartado. “Temos uma grande preocupação em não perdemos nesta reforma as poucas estruturas para a agenda racial e de gênero”, afirma Letícia.
No pacote das reformas da ONU está proposta a relocação de três das agências da ONU de Nova York para Nairóbi até ao final de 2026 – o único centro de operações em África e no Sul Global. Neste sentido, Letícia Leobet questiona se esta mudança significará a manutenção do poder de algumas agências, no caso a ONU Mulheres se for fundida à uma outra agência como o UNFPA (Fundo das Nações Unidas para a População). “Existe uma temeridade de haver um desmonte da ONU Mulheres, criada, em 2010, para unir, fortalecer e ampliar os esforços mundiais em defesa dos direitos humanos das mulheres, inclusive as mulheres negras. Seria o desmoronamento de conquistas importantíssimas, como as alcançadas na Conferência de Pequim”, afirma a assessora internacional de Geledés.
Embora apresentada como uma decisão motivada por critérios econômicos e de eficiência administrativa, a medida tem efeitos estratégicos para a geopolítica da governança internacional, em especial do Sul Global. Nairóbi se junta ao restrito conjunto de cidades que abrigam importantes estruturas centrais das Nações Unidas, ao lado de Nova York, Genebra e Viena.
De Durban ao Stakeholder Group
Geledés sempre acompanhou de perto as ações da ONU, inclusive participando diretamente de muitas das principais conquistas da organização nas temáticas para afrodescendentes e africanos nas últimas décadas. A Conferência de Durban, em 2001, foi um exemplo disso, com o instituto ativamente envolvido no processo preparatório na Conferência Regional do Chile em 2000. Como se é sabido, a Conferência de Durban se tornou um divisor de águas, uma vez que o termo “afrodescendente” foi oficializado e o racismo reconhecido como um problema transversal. Durban ainda declarou a escravização e o tráfico de escravos como crimes contra a humanidade, exigindo-se a reparação histórica. Desde então, os Estados-membros foram convocados a desenvolver políticas específicas nas áreas de educação, saúde e segurança, com o antirracismo como fator central no desenvolvimento.
O estabelecimento da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024 e agora a Segunda Década, 2025-2034), que visa o reconhecimento, a justiça e o desenvolvimento, e a criação do Fórum Permanente para Afrodescendentes, um espaço para discutir e propor ações em prol de seus direitos, também foram marcos colossais para os afrodescendentes ao redor do mundo. E recentemente, decorrente da participação direta de Geledés nos fóruns internacionais da ONU, foi criado o Stakeholder Group de Afrodescendentes, com Geledés na atual copresidência.
Portanto, neste cenário de reformas da ONU, Geledés e outras organizações negras, defensoras de direitos humanos, feministas e ambientalistas se articulam para elaborar propostas e posicionamentos que denunciem possíveis cortes ou fusões que possam diluir todas essas conquistas.
A crise de confiança, aliada a cortes orçamentários (como os mais de US$ 500 milhões previstos de cortes no orçamento-programa da ONU para 2026 vinculados à Iniciativa UN80) mostram que o multilateralismo está sendo redesenhado — nem sempre para proteger os mais vulnerabilizados.
Organizações antirracistas como Geledés e suas parceiras têm diante de si tanto um risco quanto uma oportunidade. O risco: deixar que mandatos vitais sejam diluídos, que vozes sejam silenciadas sob a retórica da eficiência, no contexto de uma ONU cada vez mais refém de vetos, cortes e interesses estatais poderosos. A oportunidade: organizar-se coletivamente, tornar visíveis as ausências, propor mandatos reforçados, articular solidariedades internacionais, estruturar sua atuação para além do simbolismo.
Se a ONU nasceu em 1945 com o propósito de evitar os horrores de guerras mundiais, promover paz, justiça internacional, cooperação e a promessa de um mundo onde direitos humanos fossem centrais, hoje estamos em um momento decisivo: ou o multilateralismo se renova com justiça racial, fundamentos antirracistas e redistribuindo poder às comunidades outrora marginalizadas — ou continuará a ser instrumento de manutenção de uma ordem globalmente insustentável.