Eu me peguei pensando esses dias: será que só no Brasil a gente gruda no estereótipo que o mundo e a mídia nos jogam?. Não, talvez a gente tenha aprendido com os europeus. É, certamente sim, isso é tristeza colonizadora introjetada em nossos pulmões, mentes e corações.
Aprendi na escola a pensar no continente africano como algo distante, cheio de elefantes e leões e afundado em uma pobreza extrema. Meu ensino todo foi olhar para essa versão confusa e reducionista de um continente absurdamente diverso. Olha que loucura os colonizadores fizeram!
Recentemente, eu fui à Africa Climate Week, uma plataforma global para acelerar a implementação climática, reunindo governos, especialistas técnicos, instituições financeiras, sociedade civil e jovens para transformar ambição em ação.
Antes de sair de Brasília, cidade em que hoje eu vivo (está seco o Cerrado, hein, galera!), falei da viagem com um taxista e umas amigas, e a reação imediata era: “Nossa, é de lá aquelas imagens de pobreza extrema com crianças?”.
Recebi esse tipo de pergunta umas quatro vezes antes de embarcar para São Paulo. A minha resposta era logo dizer: “Acho que já foi assim, mas hoje precisamos olhar para uma África que sempre foi rica e produtora de tecnologia e tradições”.
É que nunca nos falaram que a Etiópia ocupa um lugar singular no tabuleiro geopolítico global. Além da sua posição estratégica no Chifre da África, ela carrega a força histórica de uma das civilizações mais antigas do mundo, o único país africano a resistir aos ataques europeus a ponto de nunca ter sido colonizado (isso me emociona sempre que leio, escrevo ou digo em voz alta).
Essa trajetória de independência consolidou sua imagem como símbolo de soberania e orgulho continental, projetando-a como referência política e cultural em toda a África – mas essas informações não chegaram aos livros didáticos daqui.
Hoje, a localização privilegiada da Etiópia, próxima ao Mar Vermelho e ao Golfo de Áden — uma das rotas comerciais mais movimentadas do planeta —, faz dela um ator central para a segurança, o comércio e a integração regional. Além disso, a capital Addis Abeba, sede da União Africana e de diversas organizações internacionais, transformou-se em capital diplomática do continente, ampliando o peso do país nas articulações multilaterais e reforçando sua vocação de liderança africana.
Olhar para a Etiópia, portanto, é enxergar um espaço onde história e geopolítica se entrelaçam, revelando um país que não apenas preserva a memória de sua autonomia, mas também continua a moldar os rumos da política africana e a inspirar a busca por protagonismo no cenário internacional.
Mas, durante muito tempo, a Etiópia foi transformada em sinônimo de fome e miséria pelo olhar colonial que escolheu reduzir a África a um continente condenado à dependência. As imagens de crianças com fome que circularam mundo afora nos anos 1980 não eram neutras: serviam para consolidar a narrativa de que a África precisava ser “salva” pelo Ocidente, reforçando um imaginário paternalista que negava sua história e sua força.
No entanto, a própria Etiópia desmente esse enredo simplista, e com um orgulho que poucas vezes eu vi de perto – talvez na Baía de Todos-os-Santos. Trata-se do único país africano que jamais foi colonizado, e repetir isso com muita força é essencial para a história, símbolo de soberania e resistência frente às potências imperialistas. A provocação é clara: talvez não fosse a Etiópia o “problema”, mas sim a lente colonial que sempre quis enquadrá-la.
Nós chegamos à noite em Addis Abeba, uma cidade cheia de luzes, prédios enormes, muitas pessoas nas ruas. “Nós” somos eu e Thaynah Gutierrez, minha parceira recente nos trabalhos de articulação e formulação política em Geledés – Instituto da Mulher Negra. Encontramos uma região pulsante, olhos intensos de vida. Vivemos pouco a cidade, bem menos do que gostaríamos. Viajamos, como comentei, por conta da Africa Climate Week.
Em discussões internacionais, os países africanos constantemente apontam a falta de recursos e visibilidade para as soluções que são desenvolvidas em seus territórios e como estão sendo diretamente afetados pela crise climática. É de uma força e de uma importância absurdas que a Semana de Clima oficial da ONU tenha acontecido de novo em um país africano do tamanho e importância da Etiópia, porque o país simboliza, ao mesmo tempo, a história de resistência africana e os desafios e potencialidades do continente diante da crise climática.
A migração forçada na Etiópia é um dos efeitos mais visíveis da interseção entre crises climáticas, pressões sociais e disputas geopolíticas. Secas prolongadas e enchentes devastadoras têm expulsado milhares de pessoas de suas terras, comprometendo a agricultura de subsistência, que é a base de vida da maioria da população. Essa situação se vê de perto nas ruas de Addis Abeba, onde centenas de mulheres andam dia e noite em busca de ajuda.
Para além da tragédia humanitária, essa realidade escancara uma injustiça histórica: a Etiópia, que pouco contribuiu para a crise climática global, paga um preço desproporcionalmente alto, enquanto países petroleiros — os verdadeiros responsáveis pelo aquecimento — seguem impondo modelos de desenvolvimento predatórios.
A experiência etíope revela a urgência de pensar a migração não apenas como consequência, mas como eixo central das políticas climáticas e de direitos humanos. Tratar o deslocamento forçado como exceção é fechar os olhos para um fenômeno que, na África e em outras regiões do Sul Global, já é regra.
A Etiópia, mais uma vez, nos obriga a encarar a crise climática como crise de justiça.
No país, onde mais de 65% das mulheres vivem em áreas rurais e dependem diretamente da agricultura de subsistência, a crise climática tem um impacto de gênero profundo e desigual. Secas prolongadas e chuvas irregulares comprometem a produção agrícola, empurrando mulheres e meninas para jornadas ainda mais longas em busca de água e alimentos, ampliando o risco de abandono escolar.
Além disso, a vulnerabilidade climática agrava problemas já existentes: a falta de acesso a serviços de saúde materna, que só alcançam cerca de 50% das parturientes, torna-se ainda mais crítica em contextos de deslocamento forçado por enchentes ou escassez hídrica.
O paradoxo é evidente: apesar de serem protagonistas da sobrevivência cotidiana das comunidades, as mulheres continuam invisibilizadas nos processos de tomada de decisão climática. Reconhecer esse desequilíbrio não é apenas uma questão de justiça social, mas de eficácia:
Sem a centralidade das mulheres, não há solução climática que seja sustentável na Etiópia, nem no continente africano e muito menos em nível global.
As mulheres etíopes desempenham um papel essencial na construção de soluções comunitárias para a crise climática, liderando iniciativas que promovem a resiliência ambiental e a segurança alimentar. Projetos como o CREW (Climate Resilience through Empowering Women) capacitam mulheres produtoras de café, proporcionando acesso a práticas agrícolas sustentáveis e fortalecendo sua liderança no setor. Além disso, a UEWCA (Union of Ethiopian Women Charitable Associations) atua desde 2016 para melhorar a resiliência climática de mais de 49 mil mulheres em comunidades rurais, oferecendo treinamento em técnicas de mitigação e adaptação climática, estratégias de proteção ambiental e diversificação de renda.
Essas iniciativas mostram como o empoderamento feminino é crucial para enfrentar os desafios climáticos e promover soluções sustentáveis.
Voltamos ao Brasil cheias de perguntas sobre a Etiópia, mas com uma certeza absoluta: que lugar sedutor, com olhar penetrante sobre a vida e, principalmente, sobre o futuro. Um país com muito a ensinar, muita resistência para se compartilhar e transcender.
Obrigada, Etiópia.

Mariana Belmont – Jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista. E organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).