A primeira infância e a inviabilização do possível

A educação acadêmica não é suficiente para formar pessoas construtoras de um mundo menos violento.

Fonte: Revista Viração

Por João Augusto Figueiró,

do Portal Envolverde*

Há milênios discorre-se sobre o adulto ser resultado de sua natureza, das relações com a família e grupos sociais, da cultura, valores, crenças, normas e práticas. “Educai as crianças e não será necessário castigar os homens”, dizia Pitágoras. Platão clamava por melhores “nutrientes” sociais e culturais aos pequenos. O argumento de que a primeira infância é decisiva na formação do adolescente e do adulto passou a sustentar-se em estudos e pesquisas científicas nos últimos 100 anos. Mais recentemente, a neurociência evidenciou que episódios precoces de natureza física, emocional, social e cultural permanecem inscritos por toda a vida nas conexões sinápticas, por meio de fenômenos de neuroplasticidade e biomoleculares.

 

Construímos um mapa da realidade a partir das experiências da infância. A criança é dotada de capacidade absorvente: tudo recebe, julga com imaturidade e pouco recusa ou reage. Ela estrutura a personalidade do futuro adulto. A análise do impacto da primeira infância (de 0 a 6 anos) na compreensão do mundo deve considerar o universo adulto e o infantil, a desumanidade do primeiro e a humanidade do segundo. Se o adulto de hoje foi um dia criança – e a criança de hoje será o adulto de amanhã -, de onde provém, então, a desumanidade da sociedade contemporânea?

 

Freud demonstrou que as interações precoces envolvendo os aspectos cognitivos e, fundamentalmente, os afetivos são pré-moldes das futuras relações do sujeito consigo, com os outros e com o ambiente. Karl Jasper discorreu sobre “o homem só conseguir chegar a seu verdadeiro ser conduzido pelo outro”. Jean-Jacques Rousseau definiu o homem como um ser “feliz e bom” – e que os preconceitos culturais e as normas da vida social produziriam “sua crueldade e infortúnio”. John Locke teceu considerações sobre a tendência inata da criança em “desenvolver sua personalidade original sob influência do ambiente e da aprendizagem”. E Maria Montessori estabeleceu a preparação do ambiente – muito antes do ingresso da criança na escola – como “chave da educação e da cultura real da pessoa desde o nascimento”.

 

Esquecemos esses ensinamentos? Os números dizem que sim: dos 22 milhões de crianças brasileiras de 0 a 6 anos de idade, mais de 14 milhões estão fora de qualquer atendimento escolar ou apoio institucional. O percentual de não-atendidos chega a quase 70%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A Agência Senado aponta que 13 milhões de crianças nessa faixa etária, de famílias carentes, estão fora de creches. Somos detentores do triste recorde de crianças mais estressadas do mundo.

 

Infelizmente, o Brasil não dispõe de estatísticas confiáveis sobre a abrangência da violência contra a criança e o adolescente, exceto quando a vítima morre ou o agressor é preso. Temos alguns dados locais, estudos frequentemente parciais, amostragens, muitas teses, mas nada de abrangência nacional, além da taxa de mortalidade por “causas externas” que inclui assassinatos, afogamentos e acidentes. Nosso sistema de registro é falho, os profissionais que atendem às vítimas geralmente não recebem treinamento adequado e a notificação compulsória, apesar de existir, não é corretamente cumprida. Viceja a guerra dos números com equívocos, manipulações, uso político dos dados, em que faltam ações efetivas e preventivas. Sobre a questão da violência e abusos perpetrados contra as crianças e adolescentes e suas repercussões, podemos citar que mesmo os indicadores indiretos, como a evasão escolar, o número de adolescentes infratores ou em abrigos e mesmo as taxas de morbidade (número de crianças atendidas nos principais hospitais de emergência do país), também são falhos.

 

Por sua magnitude e ubiquidade, a violência contra a criança merece especial atenção no Brasil. Crianças de todas as classes sociais e regiões são abusadas e maltratadas. Abusos físicos, emocionais ou psicológicos, e sexuais – incluindo a exploração comercial -, bem como as diferentes formas de negligência, como omissão e abandono pela família ou pelo Estado, e o trabalho infantil são considerados crimes pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A maioria desses eventos criminosos sequer é julgada ou punida. É uma violência banalizada pela impunidade e pela corrupção que grassam no poder público. Muitas categorias de transtornos mentais há tempos vêm sendo associadas ao abuso, negligência e violência na infância – em especial os de ansiedade, dissociativos, depressivos, de personalidade, ligados ao uso abusivo de álcool e drogas, de conduta com comportamentos transgressores, impulsivos, agressivos e violentos.

 

Há formas mais silenciosas e sutis de violência. Uma das grandes responsáveis pela transmissão transgeracional da violência na sociedade, a cultura do consumismo destrói valores humanos. Somos resultado de um período marcado pela concentração econômica de bens, de conhecimento e de cultura, o que leva parcela significativa da população à progressiva exclusão. A pressão consumista atual, jamais vista na história humana, pavimenta terreno para a explosão da violência cotidiana.

 

Os fatores de risco e proteção da violência, sua emergência e prevenção são sobejamente conhecidos da literatura médica. Começa no período pré-concepção com fetos indesejados ou rejeitados, decorrência da falta de um programa nacional eficaz de planejamento familiar e controle da natalidade. Permanece nas gestações malcuidadas, tensas e desamparadas e nos partos desnecessariamente cirúrgicos. Continua na primeira infância privada de nutrientes afetivos fundamentais ao saudável desenvolvimento psíquico, social e cultural. Exigimos e desenvolvemos no país estrutura física como pontes, viadutos, estradas, aeroportos e estádios de futebol, mas poucos se debruçam sobre a infraestrutura humana que irá gerir esses recursos. A educação acadêmica não é suficiente para formar pessoas construtoras de um mundo menos violento. Nada contra investimentos nessa área, muito ao contrário, mas, se não fosse por ela, não teríamos a bomba atômica, a indústria armamentista, governos tirânicos e corruptos e guerras cirúrgicas, todas realizações de pessoas letradas e educadas. Lamentavelmente, os argumentos científicos, filosóficos e pedagógicos atuais não conseguem convencer para o investimento na primeira infância. Mostremos, então, algumas razões econômicas para isso.

 

Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), 1 dólar investido nessa faixa etária gera economia de 7 dólares em assistência social, atendimento a doenças mentais, manutenção de sistemas prisionais, repetência e evasão escolar; 15 dólares per capita em doenças que continuam manifestando-se na vida adulta como depressões e abuso de drogas, entre outros.

 

Interferir adequadamente na infância é um desafio. Os achados científicos recentes podem contribuir para isso. Os conceitos de salutogênese e resiliência ajudam a explicar por que alguns indivíduos se desenvolvem de forma sadia e outros conseguem triunfar mesmo em ambientes hostis e adversos. A resiliência refere-se à relativa resistência de um indivíduo a experiências de risco em seu ambiente para a superação dos estresses e adversidades. É utilizado para referir-se a pessoas de desempenhos psicológicos bons, a despeito das vivências negativas das quais se esperaria sequelas graves. Criada pelo pesquisador Aaron Antonovsky, em 1979, a salutogênese designa as forças que geram saúde. É o oposto da patogênese (influências que causam a doença). Antonovsky recomenda potencializar as forças que se opõem ao estímulo causador da doença para evitar que as pessoas adoeçam. Propõe formas de estimular e preservar essa “força”, pela ciência, pela salutogênese, promovendo a saúde individual, coletiva e social.

 

A promoção da cidadania e o fomento da saúde mental e social (salutogênese), além de educação e cuidado, contribuem para que a criança possa, desde cedo, resolver conflitos de maneira pacífica e não-violenta – lidando de modo respeitoso e generoso com o outro e o ambiente e confrontando a realidade, as adversidades e as frustrações de forma construtiva e inclusiva das diferenças (resiliência). O mundo contemporâneo impele ao resgate de valores essenciais como ética, amor e respeito às diferenças para a promoção da convivência societária e solidária fundamentada na resiliência e na salutogênese.

 

Seria este um discurso delirante? Paulo Freire, em a Pedagogia da Indignação, nos socorre e ensina que “o discurso da impossibilidade da mudança para a melhora do mundo não é o discurso da constatação da impossibilidade, mas o discurso ideológico da inviabilização do possível”. Convirjamos então na construção desta “utopia possível”.

 

 

* João Augusto Figueiró é médico e psicoterapeuta do Hospital das Clínicas da FMU-SP, presidente e diretor científico do Instituto Zero a Seis – Primeira Infância e Cultura de Paz. Trabalhou na implantação das atividades da Universidade da Paz, da ONU, em São Paulo, e na construção da Rede Gandhi – uma parceria entre o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, a Unesco e a Associação Palas Athena.

 

 

+ sobre o tema

Professores democráticos devem encorajar a crítica dos alunos

Um educador verdadeiramente democrático é aquele que ajuda a...

Escola de Planaltina ganha prêmios com projeto contra machismo e homofobia

Correio publica, a partir de hoje, série de três...

“Grandes grupos econômicos estão ditando a formação de crianças e jovens brasileiros”

Em entrevista exclusiva, novo reitor da UFRJ, Roberto Leher,...

para lembrar

Renato Janine Ribeiro é o novo ministro da Educação

Ele é professor da USP e tem 18 livros...

A escola e o terreiro: diversidade e educação antirracista em pauta

Palestrantes Do Sesc   Stela Guedes Caputo Doutora em Educação, professora do Programa...

Especialistas expõem seus argumentos na audiência pública sobre ensino religioso

Na sequência de apresentações da audiência pública sobre ensino...

Jovem passa em nove universidades dos EUA e arrecada dinheiro para viagem

Filha de cabeleireira e de um comerciante, a baiana...
spot_imgspot_img

Estudo mostra que escolas com mais alunos negros têm piores estruturas

As escolas públicas de educação básica com alunos majoritariamente negros têm piores infraestruturas de ensino comparadas a unidades educacionais com maioria de estudantes brancos....

Educação antirracista é fundamental

A inclusão da história e da cultura afro-brasileira nos currículos das escolas públicas e privadas do país é obrigatória (Lei 10.639) há 21 anos. Uma...

Faculdade de Educação da UFRJ tem primeira mulher negra como diretora

Neste ano, a Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) tem a primeira mulher negra como diretora. A professora Ana...
-+=