A representação da mulher negra na propaganda

Análise semiótica do anúncio da cerveja Devassa 

Por: Wyliam Vassoler

A mulher negra tem um grande papel na sociedade brasileira. A mesma sofre de dois males da ignorância e do contexto histórico que envolve nosso país: o racismo e o sexismo (incluindo nesse o machismo). Até os dias de hoje, ela ainda sofre por ser inferiorizada em nossa sociedade patriarcal. Aliado a isso, há também a problemática racista, que até hoje ainda é um problema forte, principalmente nas gerações e famílias mais conservadoras.

O estudo a seguir tem como objetivo analisar fatos sobre o racismo e o machismo no Brasil, aliando a interpretação desses estudos a uma análise semiótica baseada nas tricotomias que Peirce apresenta em seu livro Semiótica, de 2003. Através desses dois estudos, pretende-se confirmar ou não a atitude do Procon do Espírito Santo em denunciar o anúncio ao Ministério Público, acusando a Brasil Kirin de racismo e sexismo.

Racismo no Brasil
Devido ao seu contexto histórico, o Brasil é um país racista. A América Latina, colonizada pela Europa, acabou herdando o eurocentrismo, segregando e rejeitando culturas diferentes. E isso é constante até os dias de hoje. Segundo Dijk (2008, p. 10), os não-europeus foram tratados como indivíduos inferiores, através de uma ideologia (eurocêntrica) que serviu como legitimação da escravidão, da exploração e da marginalização.

Esse processo de exclusão resultou na desvalorização das culturas indígenas, africanas e mestiças do Brasil. Essa filosofia branca da cultura brasileira é encontrada em programas de televisão, revistas, jornais, e no próprio estilo de vida do brasileiro, apesar desse último ser um grande paradoxo. Isso porque, segundo Guimarães (1999, p. 39), os brasileiros se imaginam numa democracia racial.

A questão é que essa democracia racial é apenas um pensamento falso e superficial desenvolvido pelos brasileiros. Como afirma Freitas (1985, p. 12), “nenhuma outra região do Novo Mundo foi tão completamente modelada e condicionada pela escravidão quanto o Brasil.

Simplesmente, a escravidão fez o Brasil”. O argumento do autor é forte se lembrarmos que o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão.

Machismo no Brasil
Outro problema grave na cultura brasileira é o machismo, sendo este um elemento ideológico ligado à dominação do homem na sociedade, minimizando, controlando ou castrando o papel da mulher.

O machismo enquanto sistema ideológico, oferece modelos de identidade tanto para o elemento masculino como para o elemento feminino. Ele é aceito por todos e mediado pela “liderança” masculina. Ou seja, é através deste modelo normalizantes que homem e mulher “tornam-se” homem e mulher, e é também através dele, que se ocultam partes essenciais das relações entre os sexos, invalidando-se todos os outros modos de interpretação das situações, bem como todas as práticas que não correspondem aos padrões de relação nele contidos. (DRUMMOND, 1980, p. 81)
Esse sistema de opressão mostra sua face quando vemos os cargos ocupados pelas mulheres, a sua média salarial inferior à dos homens, o seu papel na família, a sua representação na mídia, etc. Fabrízia Pessoa Serafim fala sobre isso em seu artigo Teorias feministas do Direito: uma necessidade no Brasil:

O fato das populações feminina e negra tenderem a ocupar postos de trabalho mais precários do que aqueles ocupados pela masculina e branca; demonstram que as mulheres são maioria entre os empregados domésticos, trabalhadores na produção para o próprio consumo e não remunerados; persiste ainda a divisão sexual do trabalho, forçando as mulheres a manterem uma sobrecarga de trabalho ao acumularem as obrigações relativas ao trabalho exercido fora de casa ao trabalho doméstico de cuidado com a casa e com os filhos. (SERAFIM, 2012, p. 326)

O anúncio da Cerveja Devassa
O anúncio do qual a análise será realizada no presente artigo refere-se à empresa Brasil Kirin, responsável pela marca da Cerveja Devassa. Nele, temos a imagem de uma mulher negra e o seguinte texto: “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra. Devassa negra. Encorpada, estilo dark ale de alta fermentação. Cremosa com aroma de malte torrado.”

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O mesmo foi veiculado no período de 2010 a 2011. Segundo informações da Revista Exame (2013), a denúncia foi realizada no ministério Público pelo Procon do Espírito Santo, sendo acusada de discriminatória e sexista. A multa pode chegar a até R$ 6 milhões.

Semiótica

A semiótica pode ser explicada como a ciência da leitura e interpretação de signos. Através da mesma, podemos ter a visão dos processos de compreensão de imagens, textos, fotografias e quaisquer outros elementos utilizados na linguagem. Peirce, pai da semiótica universal, dividiu o estudo dessa ciência em três categoriais básicas: a primeiridade, a secundidade e a terceiridade.

Podemos entender a primeiridade como o estudo do elemento de forma independente e isolada de outros elementos. Nöth (1995, p. 64), localiza a secundidade “quando um fenômeno primeiro é relacionado a um segundo fenômeno qualquer (CP, 1356-359)”. Nessa categoria, iniciamos o processo de comparação. Terceiridade é a categoria que relaciona um fenômeno segundo a um terceiro (CP, 1.337/ss): “É a categoria da mediação, do hábito, da memória, da continuidade, da síntese, da comunicação, da representação, da semiose e dos signos”.

O representamem e a primeira tricotomia aplicada ao anúncio

As tricotomias apresentadas por Peirce são direcionadas ao representamem ao objeto e ao interpretante. O representamem, ou seja, o objeto perceptível, “o veículo que traz para a mente algo de fora”, como cita Nöth (1995, p. 67). Podemos também entender como representamem “(…) aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo.” (PEIRCE, 2003, p. 46). Muitas vezes o representamem é confundido com o signo, até mesmo por Peirce, mas podemos entender o representamem como a ideia pessoal e subjetiva do signo.

Aplicando esse conceito aos signos, podemos entender a primeira tricotomia como o estudo da classificação do representamem, dividido em quali-signo, sin-signo e legi-signo.

No anúncio, poderíamos entender como quali-signos as cores, a textura do papel onde o anúncio foi impresso, o formato, etc.
O sin-signo da foto é o conjunto de elementos visuais e textuais que compõem e transformam o anúncio em algo singular. Segundo Peirce (2003, p. 52), o sin-signo é o conjunto de quali-signos que compõem a obra. No anúncio, temos a mulher negra, a garrafa e o copo de cerveja, o texto e sua disposição, o fundo de losangos e os outros elementos necessários em um anúncio, como o logo da empresa, as informações impostas por lei em relação às bebidas alcoólicas, as informações da empresa, etc.

Sobre o legi-signo, Peirce (2003, p. 52) explica que o mesmo é considerado uma lei que é um signo, lei esta estabelecida pelas pessoas e pela sociedade. Alguns legi-signos são bem evidentes no anúncio, como por exemplo o estilo de desenho adotado na ilustração do anúncio, além do próprio fato do anúncio ser ilustrado, e não fotografado. Esse estilo remete, através de convenções sociais, à ideia de que a cerveja e o anúncio querem passar uma ideia mais clássica e vintage ao leitor. Outro legi-signo adotado no anúncio é fruto da convenção do uso de mulheres na representação de cervejas. Assim como temos a “loira gelada” representando a cerveja tradicional na maioria dos anúncios, temos aqui a “negra encorpada” representando a cerveja dark ale. Uma outra convenção social utilizada no anúncio se revela na vestimenta utilizada pela mulher do anúncio, remetendo às dançarinas de cabaré ou às casas noturnas no estilo moulin rouge.

A segunda tricotomia e o objeto

A segunda tricotomia refere-se à relação entre o signo e o objeto. Ela é dividida em ícone, índice e símbolo, como explica Peirce (2003, p. 53). Os ícones são a representação icônica do objeto, que não teria esse significado caso o objeto não existisse. O índice é um signo que indica significados ao objeto. O símbolo é um signo que, afetado por leis e convenções, faz com que o objeto tenha outros significados relacionados a essas leis.

Podemos ver a garrafa como uma representação icônica do que tem dentro dela, a cerveja, que é o produto final consumido. Essa mesma garrafa, com gotas de água em sua superfície, pode indicar que o produto está gelado, criando uma sensação de frescor ao se imaginar bebendo a cerveja. A cor da pele da mulher também é um ícone em relação ao tipo de cerveja vendido no anúncio, criando uma relação de comparação entre a mulher e o produto. A cor laranja da roupa da mulher, em conjunto com o teu tom de pele, podem ser considerados também um índice, por estão no mesmo tom da garrafa de cerveja. A posição da mulher e sua roupa simbolizam sensualidade, assim como a roupa simboliza uma dançarina de cabaré, como visto na análise do legi-signo.

O interpretante e a terceira tricotomia

Segundo Peirce (2003, p. 53), um signo pode ser denominado por rema, discente ou argumento, através da terceira tricotomia, voltada ao interpretante. Podemos entender como rema, palavras ou expressões que vem em mente quando contemplamos a imagem. Os signos discentes seriam formados pelo conjunto de duas ou mais remas. Unindo o signo discente a uma análise comprobatória, teríamos então o argumento.

Os remas do anúncio podem ser diversos, dependendo do nível de compreensão do receptor. Podemos identificar alguns remas como “mulher”, “cerveja”, “mulher negra”, “roupa decotada”, “salto alto”, etc.

Com a união desses remas, temos as seguintes ideias: “a mulher é negra”, “a mulher é sexy”, “a cerveja é negra (pois é do tipo dark ale)”, “a cerveja é um produto de consumo”.

O argumento de que o anúncio é considerado sexista e abusivo está nos seguintes argumentos: “mulher e cerveja estão sendo comparadas”, “mulher considerada sexy pelos padrões publicitários é comparada com cerveja”, “mulher negra é comparada com cerveja dark ale”, “a mulher está sendo comparada com um produto de consumo”, “a mulher está sendo representada como um produto de consumo”.

Conclusões

Unindo as informações sobre racismo e machismo no país com as informações expostas pela análise semiótica do anúncio, podemos chegar à conclusão de que a mulher está sendo usada como apelação para a venda de um produto de consumo, como se a mesma também fosse um produto de consumo, agregando os seus valores à cerveja.

Também fica clara a força do machismo no país quando vemos que esse fato apenas acontece em relação ao corpo feminino, sendo raro encontrar anúncios onde o corpo do homem representa o valor de algum outro produto de consumo que dê a ideia de uso e ingestão. É muito mais forte a ideia de “beber uma mulher” do que de “beber um homem”. Isso está claramente ligado ao machismo.

Em relação ao racismo, temos que levar em consideração o respeito pelas negros, que foram por séculos escravos na mão dos brancos, literalmente usados, minimizados, tratados como seres inferiores e até como animais. As empresas precisam ter esse cuidado na hora de mostrar o negro e a negra na mídia. Através da empatia, brancos podem entender o sofrimento e marginalização que o negro sofre hoje em nosso país e na maioria do planeta. Até hoje o continente africano ainda é colonizado pelos brancos.

Chegando a essas conclusões, é importante ver o lado da mulher negra e o motivo que as empresas e as agências de publicidade precisam entender em relação ao respeito que se deve a elas que, de uma forma geral, foram sempre tratados como segunda e até terceira classe (levando em consideração que o homem negro ainda estava um degrau acima da mulher negra) no processo histórico do país.

Referências bibliográficas

DIJK, Teun Adrianus Van (Coord). Racismo e discurso na América Latina. São Paulo: Contexto, 2008. 383 p.

DRUMONT, Mary Pimentel. Elementos para uma análise do machismo. Perspectivas: Revista de Ciências Sociais, 2009.

FREITAS, D. Raízes históricas do racismo brasileiro. v. 4, n. 82. São Paulo: D.O. Leitura, 1985.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 1999. 240 p.

NOTH, Winfried. Panorama da semiótica: de Platão a Peirce. 4. ed. São Paulo: Annablume, 2005. 149 p.

PEIRCE, Charles S. Semiótica. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 337 p.

SERAFIM, Fabrízia Pessoa. Teorias feministas no Direito: uma necessidade no Brasil.

 

 

Fonte: Medium

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