Afrodescendentes entram pela primeira vez nos acordos da COP30: vitória inédita se deve à ação contínua de Geledés

27/11/25
Por Kátia Mello [email protected]
Reconhecimento atravessa Transição Justa, Gênero e Adaptação e consolida novo paradigma na governança climática global

A COP30, encerrada neste sábado 22, em Belém, marcou uma inflexão histórica na política climática global ao aprovar, pela primeira vez, documentos centrais da UNFCCC — relativos à Transição Justa, ao Plano de Ação de Gênero (GAP) e aos Objetivos/Indicadores da Meta Global de Adaptação (GGA) — com o ineditismo de mencionar explicitamente as populações afrodescendentes. A referência também aparece no documento político da presidência, o Mutirão, consolidando um feito articulado por Geledés – Instituto da Mulher Negra, organizações afrodescendentes e o Estado brasileiro.

Desde a ECO92, Geledés tem apontado a urgência de inserir raça no centro da governança do clima, retomando de forma estruturada essa incidência na COP28, em Dubai. Agora, com o reconhecimento formal em Belém, a organização afirma que esse avanço permanece “essencial para a garantia de direitos”, especialmente em um cenário global no qual muitos países “ainda ignoram — ou evitam enfrentar — as raízes estruturais do racismo”. Para Geledés, incorporar afrodescendentes na arquitetura decisória do clima corrige silenciamentos de décadas e alinha a política internacional às realidades de populações que, embora sejam as mais afetadas, seguem produzindo saberes, práticas e soluções essenciais de resiliência territorial.

Esse avanço ganha ainda mais peso diante de um diagnóstico revelado em novembro em pesquisa inédita do Centro de Pesquisa Aplicada em Direito e Justiça Racial da FGV Direito SP, em parceria com Geledés. O levantamento demonstrou que a normativa climática internacional tem ignorado de forma sistemática a dimensão racial da crise climática. A análise foi realizada com 115 documentos internacionais publicados entre 1992 e setembro de 2025 e constatou que apenas 23% deles mencionam afrodescendentes — e, ainda assim, 95,6% dessas referências aparecem em documentos sem força legal, cuja adoção pelos Estados-membros da ONU é voluntária. Esse mapeamento evidencia a profundidade da lacuna histórica que o reconhecimento conquistado na COP30 começa, pela primeira vez, a reparar.

A dimensão dessa reparação também se mede em números e em política: segundo o Grupo de Trabalho de Especialistas da ONU, a diáspora afrodescendente soma 200 milhões de pessoas no mundo, e o Brasil concentra 120 milhões, ou 56% da população nacional. Inserir essas populações nos textos da UNFCCC é, portanto, reconhecer que política climática sem raça é uma política deficitária, recolocando no centro do debate aqueles que sempre estiveram na linha de frente dos impactos.

Essa virada se expressa de maneira entrelaçada nas três frentes de negociação. No campo da Transição Justa, Geledés enaltece o fato de os negociadores brasileiros terem mantido a demanda do movimento negro e resistido a pressões de supressão das menções. “Celebramos os negociadores brasileiros por não recuarem na demanda do movimento negro sobre as menções”, afirma a organização. Ao mesmo tempo, reconhece o papel das organizações civis: “a sociedade civil manteve firme posicionamento para garantir um passo importante no combate ao racismo ambiental”. Ainda assim, Geledés sublinha que este é um ponto de partida: “Temos muito trabalho ainda e lacunas para financiamento, desmatamento e o fim dos combustíveis fósseis”, embora o reconhecimento obtido agora “nos dê caminho para trabalhar enquanto protagonistas dessa agenda”.

A dimensão racial também atravessou intensamente as negociações do Plano de Ação de Gênero, no qual a COP30 incorporou pela primeira vez a menção a mulheres afrodescendentes — algo que reposiciona a agenda de gênero dentro da UNFCCC, conferindo-lhe densidade interseccional. Como anunciou a organização, Geledés “considera histórico e importante para a política internacional do clima que o texto final do Plano de Ação de Gênero inclua a menção a mulheres afrodescendentes na COP30”. O instituto ainda “aponta para uma direção essencial de garantia da igualdade de gênero e de transversalidade nas agendas e processos da UNFCCC”.

Mesmo reconhecendo o avanço, Geledés sublinha a necessidade de aperfeiçoamento: “Consideramos que o texto não é perfeito e precisamos melhorá-lo na implementação”. O resultado, porém, só foi possível pelo trabalho conjunto: “reconhecemos o papel da sociedade civil organizada e das organizações que construíram coletivamente, estiveram presentes em todos os diálogos, apresentaram recomendações, promoveram articulação política e colocaram a mão na massa”. A centralidade da conquista se explica porque “mulheres e meninas afrodescendentes estão na linha de frente dos impactos ambientais, do trabalho não remunerado às vulnerabilidades econômicas e sociais”. Por isso, Geledés reforça que “as menções a mulheres afrodescendentes são fundamentais para garantir maior participação, reconhecimento e efetiva garantia de direitos”, acenando para “novos tempos para os direitos humanos dentro da UNFCCC”.

Esse movimento se articula de forma direta com a agenda de Adaptação, onde a Meta Global (GGA) incluiu — também de maneira inédita — raça como variável explícita para orientar políticas e financiamentos. Conforme registra Geledés: “o texto da Meta Global de Adaptação (GGA) traz pela primeira vez o reconhecimento aos afrodescendentes e a importância da desagregação de dados por raça, gênero e demais interseccionalidades”. Para a organização, esse resultado oferece “a possibilidade de cobrar políticas públicas de adaptação que priorizem quem de fato está mais vulnerabilizado pelos efeitos das mudanças climáticas e necessita de recursos e capacidades institucionais agora”.

Ao mesmo tempo, Geledés reforça sua posição política de promover uma mudança metodológica ao ressaltar que dados desagregados são a chave para identificar impactos, orientar investimentos, fortalecer capacidades locais e corrigir assimetrias perpetuadas pelo multilateralismo climático. “Sem isso, os indicadores de adaptação correm o risco de serem generalistas e globais apenas no papel —e cegos às desigualdades mais profundas”, destaca Geledés. 

Portanto, a vitória conquistada na COP30 não se restringe à inclusão do termo afrodescendente nos textos negociados. Ela reorganiza a gramática do regime climático, reposicionando-o como sujeito político e inaugurando uma nova etapa de disputas por implementação, financiamento, participação e responsabilização. Com conquistas simultâneas em gênero, adaptação e transição justa, Geledés transforma uma reivindicação histórica em diretriz institucional da UNFCCC com posicionamento na linha de frente das temáticas socioambientais.

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