Há discussões internacionais que parecem distantes do cotidiano, mas que, silenciosamente, moldam as condições de vida de milhões de pessoas. A COP30 é um desses espaços. Em meio às negociações técnicas e aos textos cercados de siglas, um debate específico ganhou relevância: a presença — ou ausência — da população afrodescendente nos principais documentos que orientarão políticas de adaptação, gênero e transição justa nos próximos anos. Isso revela como, na verdade, como as desigualdades históricas continuam operando mesmo nos debates sobre o futuro climático do planeta.
Reconhecer essa disputa é essencial para compreender o que está em jogo: não se trata apenas de palavras, mas de quem é visível quando o mundo decide como responder à crise climática — e quem continua sendo empurrado para as margens das decisões.
Recentemente, o Brasil conquistou destaque ao liderar a declaração contra o racismo ambiental na Cúpula dos Líderes em Belém, um marco simbólico que projetou o país como voz ativa nessa agenda. Mas o simbolismo só se sustenta quando encontra correspondência na prática. Se o governo brasileiro quer manter essa posição de protagonismo, precisa garantir que o compromisso firmado diante da comunidade internacional também se traduza em avanços concretos na COP30 — começando pelo reconhecimento explícito de afrodescendentes nos textos climáticos que estão sendo negociados em Belém.
Quando se tenta impedir que essa população seja explicitamente reconhecida, não se debate apenas a linguagem diplomática. Discute-se poder. Discute-se a memória. Discute-se quem continuará pagando, de forma silenciosa, o preço dos impactos ambientais produzidos por séculos de exploração colonial, escravidão, racismo ambiental e desigualdades econômicas que estruturam a ordem global.
Os dados que escancaram essa omissão não são novos, mas permanecem ignorados. Entre mais de cem documentos internacionais analisados desde 1992, menos de um quarto menciona afrodescendentes. E, entre essas poucas menções, quase todas aparecem em textos sem força legal. O recado é claro: reconhece-se que existe racismo ambiental, mas se evita qualquer compromisso concreto para enfrentá-lo. A COP30 tem a chance histórica de quebrar esse padrão — ou de, mais uma vez, reafirmar o silêncio institucionalizado.
Essa disputa é ainda mais significativa porque ela ocorre em plena inauguração da Segunda Década Internacional para Afrodescendentes (2025–2035). Em outras palavras, no exato momento em que a ONU reconhece que é urgente colocar justiça racial, reparação e desenvolvimento no centro da agenda global, o regime climático hesita em escrever a palavra “afrodescendentes” em seus textos. Não há contradição mais explícita.
O Fórum Permanente da ONU para Afrodescendentes foi direto em sua declaração durante a COP30: não haverá justiça climática sem enfrentar legados históricos de colonialismo e escravidão que ainda estruturam desigualdades contemporâneas. Não haverá transição justa sem reparar danos acumulados. Não haverá futuro sustentável se mulheres, jovens e comunidades afrodescendentes continuarem excluídas das mesas onde decisões são tomadas. Esse não é um argumento ideológico; é uma leitura factual das vulnerabilidades que se repetem no Caribe, na América Latina, no Brasil, no continente africano e nas diásporas espalhadas pelo mundo.
E é impossível ignorar o peso do Brasil nesse cenário. Lar da maior população afrodescendente fora da África, o país carrega a responsabilidade — e a legitimidade — de garantir que essas vozes estejam presentes nos textos da COP30. Ser sede da conferência não é apenas organizar logística e fotos oficiais; é assumir uma posição política em defesa dos grupos que historicamente foram excluídos das decisões que afetam suas vidas. Neutralidade, nesse caso, não é diplomacia. É omissão.
O que está em jogo é mais do que uma palavra ou uma categoria social. É o reconhecimento de que descendentes das vítimas do tráfico transatlântico e mediterrâneo de africanos escravizados ainda vivem, hoje, as consequências diretas e indiretas desse passado: territórios degradados, cidades desassistidas, menores capacidades de adaptação, maior exposição a desastres e menor acesso aos recursos que determinam quem sobrevive e quem não sobrevive às emergências climáticas.
A COP30 pode escolher reproduzir o velho enredo do apagamento racial ou pode escrever um novo capítulo, alinhado às promessas do século XXI. A pergunta que fica é: qual história o Brasil deseja contar quando o mundo olhar para Belém e perguntar quem teve coragem de nomear o que sempre esteve diante de nós?
Porque, ao fim, não estamos falando apenas de linguagem. Estamos falando de vida, de justiça e do direito elementar de existir plenamente num futuro que sempre nos foi negado — mas que continua sendo construído todos os dias, palavra por palavra, negociação por negociação.
Porque defender Afrodescendentes na UNFCCC
Desde a III Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban (2001), a expressão People of African descent, traduzida em português para Afrodescendentes, consolidou-se como o termo adotado internacionalmente para reconhecer, de forma precisa e abrangente, as populações que compreendem tanto os africanos e seus descendentes escravizados nos diversos tráficos históricos (transatlântico, mediterrâneo e subsaariano) quanto os africanos e seus descendentes que migraram mais recentemente para diferentes regiões do mundo, incluindo Europa, Canadá e Oriente Médio, após a independência de seus países de origem.
A escolha não é apenas semântica: ela surgiu da necessidade de um marco político comum capaz de englobar diferentes contextos históricos de diáspora, escravidão, colonialismo e desigualdades estruturais que continuam a afetar esses grupos. Desde então, esse termo orienta resoluções da ONU, documentos multilaterais e políticas globais de direitos humanos, garantindo unidade conceitual e reconhecimento jurídico nas negociações internacionais — inclusive nas discussões climáticas.
A distribuição geográfica das populações afrodescendentes reflete processos históricos de resistência e, principalmente, de marginalização que configuram experiências territoriais distintas, as quais determinam vulnerabilidades diferenciadas frente às mudanças climáticas. Nas áreas urbanas, onde afrodescendentes concentram-se majoritariamente em periferias e favelas, resultado de processos de segregação espacial e exclusão do acesso à terra e à moradia digna, membros desse grupo estão mais expostos a eventos extremos como enchentes. Esse fenômeno também impacta populações afrodescendentes em áreas rurais, especialmente as populações quilombolas, palenques e demais comunidades afrodescendente da diáspora.
Nós estamos na COP30 defendendendo People of African descent nos documentos de negociação, seguindo o legado histórico de luta do movimento negro brasileiro internacionalmente. Nossos documentos explicitam todas as reivindicações que temos colocado e dialogado com as Partes e a sociedade civil nos últimos anos.
Ester Sena – Engenheira Ambiental e Assessora de Clima e Juventude em Geledés – Instituto da Mulher Negra.
Mariana Belmont, jornalista, pesquisadora, Assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra.
Natália Carneiro, jornalista, mestranda em Comunicação pela USP, diretora em Geledés – Instituto da Mulher Negra.
Thaynah Gutierrez Gomes, administradora pública, mestranda em administração pública e governo. É assessora de clima e racismo ambiental em Geledés – Instituto da Mulher Negra.